domingo, 4 de fevereiro de 2018

Cansada palavra


Semeei o teu corpo numa jangada de vidro,

Vi partir o teu corpo em direcção ao mar,

Levavas os livros, levavas as memórias das noites perdidas,

E os sonhos vividos,

Semeei o teu corpo pensando que um dia adormecerias em mim…

E da tua partida,

Pela madrugada,

Algumas nuvens brincando na alvorada,

Palavras imensas, palavras dispersas em ti como um grito de alegria,

Hoje pertences às sombras do infinito,

Argamassadas no sombreado jardim de pedra,

E, no entanto, meia-hora depois, sentia o teu rosto na minha mão.

Ninguém apareceu à minha partida, fui só, apenas eu…

Como nas noites junto ao rio,

Perdidamente angustiado na solidão dos dias,

Escrevia no chão a revolta da doença,

Lançava lágrimas na escuridão,

Pobre, sem-abrigo, neste corredor de lume,

A lareira também ela, doente, infeliz e triste,

A cinza, o silêncio das fotografias, que poisavam no teu olhar.

As mãos trémulas, as mãos cansadas como pedras…

Fundeadas nos teus cabelos.

A noite, meu amor, a noite mergulhada na madrugada,

O metro entre curvas e pingos de luz, deixando a terra, caminhando para o horário nocturno das sanzalas de ninguém,

Em foco, as luzes que te incendeiam os lábios, em cada beijo,

Uma cansada palavra.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 4 de Fevereiro de 2018

domingo, 28 de janeiro de 2018

A dança da chuva


O resto a gente dá um jeito.

As cabras no monte,

O meu corpo submerso nas pedras coloridas da manhã,

Os sonhos, as palavras que dançam com os sonhos, na esperança de um novo amanhecer,

Amanhã a gente dá um jeito,

Qualquer coisa serve, apenas uma sílaba de luz,

As mãos trémulas quando o teu sorriso acorda,

Após quatro horas de sofrimento,

Tens o olhar límpido, clareado como a areia do Mussulo,

Os barcos dançando no teu finíssimo cabelo de espuma,

E zás, cais sobre mim.

O mar que se afunda em ti, mergulha nos teus ossos, e da noite regressa um lápis desajeitado, como eu, descubro o sonho, finjo arder no sofrimento, mas em ti, apenas em ti oiço o amanhecer,

A dança da chuva, as flores donzelas sobre o teu peito, e uma vela acesa pela tua alma…

Há coisas estranhas em ti,

Camélias,

Cravos,

Rosas…

E as velhas salinas brincam nos teus olhos.

Amanhã.

Quando se levantar em ti a alvorada.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 28 de Janeiro de 2018

sábado, 27 de janeiro de 2018

É noite


É noite. Todas as correntes de aço que aprisionam os teus cabelos estão suspensas num simples suspiro, oiço as palavras, lá longe, o enigmático silêncio das janelas de vidro, regressa a noite, a cidade arde nas mãos do sem-abrigo, uma nota de cinco euros voa nas esplanadas da solidão,

Tem lume?

Os candeeiros da paixão, emagrecidos, com fome, as ruas desertas antes de acordar a manhã,

Não. Não tenho lume!

As pedras enraivecidas, o ódio dos pilares de areia que abraçam os barcos da madrugada, os poemas famintos no corpo do poeta, está morto, esquelético, e sem palavras…

Lume não tenho. Cigarros não tenho.

É noite.

O chá e as torradas vulcanizadas nas montanhas das crateras ensanguentadas dos rochedos nublados, é noite; e sinto-me completamente colorido com o arco-íris das sílabas entre pássaros e vinhedos, e ao fundo, o magnifico rio da saudade,

Os cigarros,

As esmeraldas na algibeira do sem-abrigo, a barba quase toca no luar, o cheiro nauseabundo das ruelas sem sentido, os automóveis sibilados nos corredores da morte, e nada te desejo.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 27 de Janeiro de 2018

domingo, 21 de janeiro de 2018

Jangada de nylon


Os poemas morrem na tristeza do teu olhar.

Como sofre o dia nos teus ombros,

Enquanto lá fora, ainda noite, uma jangada de nylon gagueja em frente ao mar,

As lágrimas no teu rosto,

O silêncio das tuas mãos quando afagam o meu rosto…

Distante maré no meu corpo abalroado nas insignificantes janelas de vidro,

Os tentáculos de seda, todas as coisas impossíveis, nas tuas mãos,

Quando regressa a madrugada.

Choras.

Escreves nos meus braços as palavras invisíveis da tempestade,

Os barcos ancorados aos teus dedos…

E sofres.

E morres de mim.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 21 de Janeiro de 2018

domingo, 14 de janeiro de 2018

Cabeça de xisto


Lívido sacrifício das noites indomáveis,

Os livros da despedida esquecidos no espaço,

Viagem sem regresso,

Habito neste pobre musseque,

Que deambula pela madrugada do meu sono,

Os esqueletos teus no vidro meu,

Uma cabeça de xisto suspensa na alvorada,

E as dores que assolam o teu corpo, e as dores que dormem na tua cabeça…

Despedidas madrugadas sem dormir,

Pensando em ti,

Como uma jangada livremente sobre as nuvens…

Tenho em mim o sono da morte,

E o desejo do abismo,

Os cartazes escondidos no meu quarto,

Caras, rostos desfocados, simplesmente abandonados,

E deixo na tua mão o silêncio do rio,

Que entre montanhas,

Corre nas tuas veias…

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 14 de Janeiro de 2018

domingo, 7 de janeiro de 2018

Cartas


Recebo cartas de amigos que não as leio,

Não me apetece ler cartas,

Desgraças,

Ambientes fumegantes nas ruas desertas do meu corpo,

Recebo cartas,

Lembranças,

Livros,

Papéis e velharias,

Cartas,

Cartas de amigos sonolentos,

Recebo cartas de amigos que não as leio,

Esqueletos de prata,

Póstumo o meu nome na tua mão,

As palavras que ardem na lareira,

Como todas as cartas,

Como todos os nomes da minha infância,

Recordações,

Recordações das cartas que recebo…

E não leio…

Não,

Não me apetece ler cartas,

Por favor…

Não me enviem cartas.

Cartas, não.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 7 de Janeiro de 2018

sábado, 6 de janeiro de 2018

Esqueletos de xisto


Somos canções de espuma.

Somos corações de aço em revolta,

Somos o tecto da sonolência repartido pelo perfume da tarde,

Somos a esperança,

Somos os socalcos embalsamados junto ao rio…

Somos canções de luta,

Cansada noite entre sombras e cabeças de vidro,

As ruas, os edifícios mórbidos dos condomínios desassossegados,

Somos palavras,

Poemas, somos livros desajeitados,

Nas salinas do amanhecer,

Somos Pátria,

Somos sonâmbulos enfeitados de espuma…

Nas canções de espuma.

Somos a liberdade,

Somos os jardins abraçados à liberdade,

Somos desempregados, homens, mulheres e crianças,

No circo da aldeia,

Somos a bandeira,

Somos a esplanada junto ao mar,

Somos a noite,

Antes de acordar.

Somos equações, metáforas e limões…

Somos cabrões,

Árvores da inocência,

Somos o Inverno,

Nas lareiras do Inferno,

Somos o vento,

A geada e o pensamento,

Somos tudo o que quiserem…

Só não somos esqueletos de xisto.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 6 de Janeiro de 2018

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A chuva


A chuva. As noites recheadas de literatura, lá fora, pedacinhos de sonhos voando sobre o meu corpo ensonado, a poesia entranhada no silêncio da noite, acorrentadas as mãos ao corrimão da saudade, sempre que possível, uma sombra na minha mão,

A chuva.

Recordo os teus lábios quando te sentavas no meu colo, dentro de mim uma corrente em aço pronta a disparar a bala da cegueira, as palavras embriagadas no teu peito, a chuva, enraizada no teu cabelo, frágil, mórbido, e, sempre que adormeço tenho em mim todos os sonhos, o desenho dos sonhos, a vaidade de nada ter, a não ser, alguns livros, nada mais, alguns livros e a chuva para recordar o teu sorriso.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 25 de Dezembro de 2017

domingo, 17 de dezembro de 2017

Menino sem destino


Conheci-te na plenitude da vida,

Eras uma árvore sem destino,

Cansada de habitar o meu jardim,

Parti e ficaste suspensa no cacimbo, e, até hoje, vives na clandestina noite,

Ausente,

Permanentemente sofrida com os corpos que abraçaste,

Longínqua tarde de despedida,

Nada a fazer, meu amor,

A saudade alicerça-se ao olhar dos flamingos,

Saltitando na tua sombra,

A morte, a sofrida morte entre parêntesis,

Numa pequena folha de papel…

 

Conheci-te era eu criança, menino sem destino,

Brincava nos teus braços,

Como se fosse uma andorinha na Primavera,

Alegre, agachava-me debaixo de ti, meu amor,

E, alegremente sonhava com os teus frutos,

As mangas, as folhas caiam derradeiramente sobre o meu cabelo,

E dos calções, as primeiras palavras escritas no teu tronco,

 

Amo-te!

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 17 de Dezembro de 2017

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Tardes meninas


Todos os dias são horários perdidos,
Filhos ensonados
Nas lágrimas da madrugada,
Todos os dias são barcos esquecidos
No cais da alvorada,

Todos os dias são pássaros cansados.

Todos os dias são corpos embalsamados,
Corredores ensopados
De tristeza e azedume.

Todos os dias ardem. Todos os dias são lume
Que a lareira consome,
Todos os dias são fome,
Nas tardes de ciúme.

Todos os dias são morte,
Manhãs sem sorte,
Todos os dias são horários perdidos
Nas montanhas assassinas,
Todos os dias, jardins proibidos,
Em tardes meninas.



Francisco Luís Fontinha
Alijó, 7 de Dezembro de 2017