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foto: A&M ART and Photos
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(terça-feira de Abril)
Lembras-me a Catedral dos cigarros sem
filtro
com as suas quatro janelas de acesso ao
inferno,
lembras-me a luz desperdiçada pelas
frestas do desejo
sabendo tu que lá fora há uma boca
com fome,
de braços abertos, e agarrado à
pernada da árvore junto ao cemitério,
Não cessa de chorar
nem entra na escuridão enquanto não
se alimentar,
não acreditas nos plátanos sobre os
bancos de madeira
que o jardim da Vila esconde, e te
sentavas, como uma flor de livro na mão,
não cessam nunca, essas bocas, às
vezes, poucas e loucas,
Às vezes
triângulos de tédio abraçados a
cubos de gelo,
às vezes, às vezes sinto-me a
caminhar sobre o Tejo,
sou uma gaivota ou um velho cacilheiro,
às vezes, sou eu mesmo, um velho
desiludido, um velho sentado no infinito do abismo...
Às vezes, visto-me, sim, também me
visto e lavo e tenho higiene,
como estava dizendo, às vezes,
visto-me de ponte iluminada pelo teu azul
que suspendes no teu corpo de texto
ficcionado,
às vezes, minto-te dizendo-te que
estou bem alimentado,
mas não estou, porque estou cansado,
ou... porque... apenas me apetece dizer-te que sim,
Que comi as bolachas e bebi o leite com
chocolate,
que fumei cigarros imaginados, porque
deixei de fumar,
que, às vezes, (isto só para nós)
não me apetece sorrir nem falar nem escrever,
e escrevo, sem o saber, sem perceber
porque o faço...
porque às vezes, às vezes o que eu
queria era voar, e deixar de ter ossos e olhos verdes...
(permita-me reflectir sobre os seus lábios, sabendo
que não me pertencem, mas como é usual vê-los passear em frente à
estação de Cais do Sodré, tenho a dizer-lhe a si e a eles –
Lábios, que a minha vida melhorou significamente após o encontro
entre os meus olhos verdes e os seus lábios azuis, de tal forma, que
hoje, terça-feira, posso garantir-lhe que nunca mais me doeram as
costas, a rótula do joelho esquerdo, e melhor ainda, a dor que
sentia na perna direita, essa, desapareceu como desapareceram as
moedas de Euro que me acompanhavam na algibeira, mas aí, a
responsabilidade não é da menina, nem tão pouco da cor da sua
pele, apenas deve-se
- à má gestão do meu misero dinheiro,
um dia quis ser bailarino, depois, costureiro, nunca
dancei, mas garanto-lhe que cheguei na infância, e tenho como
testemunha a minha querida mãezinha, a desenhar vestidos e a
confeccioná-los, e tão giros que ficaram... tinha um boneco, a que
parvamente o apelidava de chapelhudo, servia-me de modelo, e amigo,
confidente, e personagem de texto não escrito, apenas falado entre
mim e as pombas e as galinhas, e tudo isto, num enorme quintal, em
Luanda, debaixo das mangueiras, tínhamos um portão de entrada, em
ferro, que dava uma certa coloração – Não filha, não é ao seu
corpo! - ao bairro, estava a falar do Bairro Madame Berman, claro,
claro que quando chovia ficava encerrado em casa a desenhar com
carvão nas paredes do corredor, quarto e casa de banho, e não me
perguntes porque o não fazia nas paredes da sala, não o sei
explicar,
- e hoje não me parece terça-feira,
e quando te falava no portão de entrada, claro
minha filha, referia-me à chegada do avô Domingos, coitado, tão
cansado de andar pelas ruas da cidade com um cordel a puxar um
machimbombo, abria-o – sim filha, o portão, o que querias que
fosse – voltava a fecha-lo, pegava-me ao colo, e, e dava-me um
beijo,
- hoje?
amanhã, talvez me recorde,
- e nunca mais soube a cor do céu e vi o sorriso do
mar.)
E deixei de amar, ser novamente a
criança com os calções e as sandálias de couro,
não pensar em livros, em termodinâmica
ou mecânica, ou literatura, ou amor,
e deixei e desaprendi que o teu corpo
reabsorveu o azul do céu e o sorriso do mar,
e..., que as árvores (não vais
acreditar) que as árvores, agora, pensam como nós,
e que amam, como nós, não hoje, mas
quando ontem era ontem, e não terça-feira...
(não revisto, ficção)
@Francisco Luís Fontinha