sábado, 30 de janeiro de 2016

Quando me sento na margem do Tejo e ao longe as luzes de Almada, o cigarro cresce na noite e o meu corpo parece um pedacinho de papel misturado no vento…

As escadas ingrimes levavam-me ao cubículo do segundo andar, lá dentro Matilde esperava-me, bato à porta na confusão da sombra do corredor, arrependo-me no medo de me ter enganado e por momentos deixo de ter a certeza se era o duzentos e dezasseis ou o duzentos e dezassete, a porta abre-se e o sorriso de Matilde abraça-se às frestas do gesso embebido no suor da tarde,
Da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
Crianças brincavam na ruela e mulheres discutiam porque o marido de uma dormia com o marido da outra,
O rio,
Da janela virada para a rua subiam os desejos do tejo e o cheiro a saudade alicerçava-se no tecto do cubículo,
Feio,
O rio deitado junto à esplanada de Belém e desciam gaivotas das nuvens de Outubro e subiam cansaços dos magalas invisíveis que marchavam numa parada militar invisível,
Matilde abraça-me,
E encosto a cabeça no perfume barato que adormecia no pescoço enfeitado de dálias e gladíolos, da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
O rio,
Feio,
Nas frestas que nos observavam e terminavam no espelho embaciado e que vezes sem conta e em silêncio e repetidamente folheavam junto ao rodapé as estórias de desejo do cubículo,
Um homem e uma mulher que ardem na fogueira da tarde,
Um homem e outro homem que suspiram no odor do corpo emagrecido e encharcado de gotinhas de prazer,
Uma mulher e outra mulher simplesmente deitadas, e uma o lençol da outra, beijavam-se e adormeciam sobre o nevoeiro que acordava no tejo e no final da tarde,
Da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
O rio,
Feio,
E frio,
Quando me sento na margem do Tejo e ao longe as luzes de Almada, o cigarro cresce na noite e o meu corpo parece um pedacinho de papel misturado no vento, a cama range tal como os suspiros de Matilde se enrolam no néon dos veleiros estacionados na vazante da maré e sinto-lhe os lábios de cereja adormecidos no meu pescoço, e frio, o rio,
E desciam,
Os braços dela até às minhas coxas argamassadas de estrelas,
- Amas-me?
E oiço sussurros no meu ouvido, amava-te muito se não tivesses os problemas que tens e não fosses quem és, e uma língua baloiça na minha face,
- Amava-te muito se não tivesses os problemas que tens e não fosses quem és,
E enquanto extingo o meu olhar nas luzes de Amada pergunto-me quem eu sou?
- Quem eu sou?
O rio que corre,
Frio,
Feio…
E da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
Corpos ensanguentados no desejo do sémen,
- Amas-me?
 
Francisco Luís Fontinha
in “Amargos lábios do Poema”
sábado, 30 de Janeiro de 2016

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Na penumbra tua casa


Fontinha
 
Na penumbra tua casa
Me esqueço do viver
Me esqueço da Primavera
E dos pássaros a correr,
Na penumbra tua casa
Sinto o odor do sofrimento
Saltitando entre os cortinados da dor
E o vento,
E o amor?
Agachado junto ao mar
Esperando o regresso da maré,
Na penumbra tua casa
Sei que habitam esqueletos de papel,
Mãos de areia
E pedacinhos beijos ao luar,
Há na penumbra tua casa
O silêncio da morte
Sem sorte
Descendo a montanha do sonho,
E hoje, na penumbra tua casa,
Esconde-se uma gaivota colorida,
Engraçadinha,
Esperta
E que urge libertar,
Do medo,
Da noite
E dos telhados de colmo,
Na penumbra tua casa,
Meu amor,
Nada mais irá acordar…
 
Francisco Luís Fontinha
sexta-feira, 29 de Janeiro de 2016