segunda-feira, 10 de março de 2014

Melanoma


Às fingidas rosas do meu envelhecido jardim,
às árvores envelhecidas do meu envelhecido jardim,
aos pássaros do meu envelhecido jardim e que infestam o meu corpo de sons estúpidos,
sangrentos,
como o amanhecer do teu olhar,

À Primavera que quase a regressar... eu não a sinto,
porque o meu envelhecido corpo que habita no meu envelhecido jardim... morreu,
voa ente noites de prazer e poesia... sem o saber,
e palavras que não consigo assassinar,
se eu pudesse... matava-a... à maldita “melanoma”,

Se eu pudesse, se eu quisesse... o meu envelhecido corpo que habita o meu envelhecido jardim... transformava-o em poéticos melódicos sorrisos,
mas não,
não a consigo assassinar,
nem tão pouco me apetece escrevê-la,

Às formigas do meu envelhecido jardim onde pernoita o meu envelhecido corpo,
sinto-o como se fosse uma âncora de papel sobre os ombros de um feliz travesti,... embriagado com a beleza do espelho mágico de uma Lisboa enfeitada com envelhecidos jardins e envelhecidos corpos... todos... todos embriagados,
sonolentos,
como as nuvens cinza dos cinzeiros de lata,
como... como os meus cigarros que dormem numa esplanada vagabunda, sós, sós... como eu,

Aos sinos da Igreja do meu envelhecido jardim onde habita o meu corpo em jejum,
lágrimas para quê?
às palavras que resisto em não escrever, como amar, ou... rezar,
e se eu a pudesse assassinar...
rezava... rezava até não me cansar...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 10 de Março de 2014

domingo, 9 de março de 2014

sofridos beijos

foto de: A&M ART and Photos

os sofridos beijos da aranha madrugada
cansada
os sofridos beijos da mulher amada
as flores poisam nela como o diáfano pergaminho embalsamado
coitada
nas pálpebras do triste amanhecer
e sem querer... ou sofrer
espera desesperadamente pelo amado
o homem de papel com olhos de luar
os sofridos beijos na penumbra noite em sofrimento
há nela um punhado sorriso de mar...
e de amar... ama as carícias do vento.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 9 de Março de 2014

Boneca de porcelana

foto de: A&M ART and Photos

Aparecias no descampado morro da solidão,
trazias vestido o perfume da paixão,
e nos seios a cansada poesia do louco poeta,
depois... depois desaparecias na escuridão de uma porta sem fechadura,
deixavas-me suspenso nas amoreiras do desejo,
e entre um beijo,
e entre a saliva do silêncio...
nada mais do que a tua sombra transposta como a matriz ranhura,
ouvíamos o mar galgar as tempestades da tua pele,
e pergaminhos de suor, pequenas gotículas de gemidos ais...
alicerçavam-se à minha mão descarnada, como uma árvore esquecida na madrugada,
e percebia de ti as inconstantes locomotivas do amor,

(tínhamos dentro de nós o beijo e as sílabas desenfreadas com dentes afiados,
não havia em nós as coloridas paredes de verniz,
não havia em nós os sonâmbulos cubos do amanhecer...
e mesmo assim, quase sempre, desejava-te como a caneta de tinta permanente deseja o papel nu,
ausente,
de ti, de mim... de nós, quando se acendiam os candeeiros das avenidas com palheiros de prata)

Aparecias, e desaparecias...
acorrentada a uma fotografia junto ao lago com cisnes circulares e olhos de noite,
procurávamos nas janelas das camas ensonadas os cortinados do Adeus,
ausentávamos-nos, e regressávamos anos depois...
tudo como dantes, tudo tão igual em pequenas fotocópias de prazer,
e sentíamos em nós os tristes pilares do edifício amarelo,
descíamos as escadas, íamos à cave dos sótãos com zincados tectos, e sabia que habitava em ti a fuga, fugias, regressavas... e quando me apercebia, lá estavas tu sentada em mim,
eu era a tua estátua de marfim,
e entre lágrimas e alguns poemas..., nada nos pertencia,
tínhamos dois corpos ancorados aos rochedos de Belém,
e entretínhamos-nos a contar os comboios em corridas apressadas para Cascais,
e depois..., e depois adormecias nos meus braços como uma boneca de porcelana...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 9 de Março de 2014