domingo, 28 de julho de 2013

no incenso partilhar...

foto de: A&M ART and Photos

imagino-a sonolenta
como as gaivotas de Agosto
partilho
não partilho
como o cacimbo das tuas mãos
quando mergulhadas no incenso partilhar...

… e partilhei

imagino-a sentada sobre o sorriso pôr-do-sol
como palmeira envenenada
partilho
não partilho
como a chuva miudinha sobre a terra queimada

… partilhei
e amei

quem sou imaginando-a sonolenta
aos espelhos verticais das cidades encantadas
partilho
não partilho
desejos e marés das velhas madrugadas

… e partilhei
e amei

as mãos tuas partilhadas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó

Um silêncio de espuma com sabor a areia branca

foto de: Francisco Luís Fontinha

Um silêncio de espuma com sabor a areia branca, o mar, as gaivotas poisadas em mastros invisíveis, brincando, correndo, sentado, inventando..., sonhando com um ferrugento triciclo com assento em madeira, pobre, apodrecida, um silêncio de espuma, saltitando os círculos da infância, com sabor a areia branca,
Mentiras descendo a calçada, abraços, como velhos guindastes de aço, perdidos entre a cidade dos vidros, mentiras, correndo, dançando, brincando como as crianças, que somos, ontem, que fomos, hoje, doces, vaidades imperfeitas, de espuma, os olhos brilhando entre mim e a minha pobre sombra, a criança, eu, imagino papagaios em papel descendo a calçada
As mentiras?
Também, como eles, chegando até mim, cansados, fartos de me ver pendurado na nuvem número cinco do primeiro andar esquerdo, as escadas, muitas, cansadas, assobiavam como quando eu imaginava acariciar-te a pele de luminosidade sonsa, insossa, acabada de transcrever as últimas palavras de ti, o teclado preso nas minhas mãos, o papel prendia-se-me nos dedos, e eu
Nada fazia, em vez de tentar libertar-me..., sonhava beijar-te debaixo das acácias em flor, e eu, nada, fértil, as palavras deambulando sobre a velhíssima máquina de escrever, o teu corpo transpirava de prazer, a fita prendia-se nos teus seios, brotava pingos de tinta, o preto e o vermelho, misturavam-se nas janelas do palheiro de Carvalhais, ouvíamos um som esquisito, tonto, como as pedras descendo violentamente a montanha do Adeus, eu, eu desejava-te no meio de toda aquela canalhada porcaria de velharias, máquina de escrever sobre o teu peito, o zurrar da Singer comendo pedaços de tecido, os livros, esses, chorando como crianças, que fomos e que éramos, um dia seremos como os cacos cerâmicos que brincam na nossa sala de jantar, um dia, um dia
Tu e eu,
Seremos os espelhos desprovidos de quaisquer imagem nocturna, o preto e o vermelho, sobre o teu corpo, a fita desenrolada da máquina de escrever, o teclado, esse, mais pezorro do que as tuas coxas de rosa perfumada, deixavas o papel entalado na ranhura, batíamos as teclas como se estivéssemos a destruir a espessa e dura casca da amêndoa encontrada no sótão da casa que tínhamos inventado dentro de nós,
Tu e eu?
Nunca,
Tu e eu, dentro do silêncio de espuma com sabor a areia branca, o mar, as gaivotas poisadas em mastros invisíveis, brincando, correndo, sentado, inventando..., sonhando com um ferrugento triciclo com assento em madeira, pobre, apodrecida, um silêncio de espuma, saltitando os círculos da infância, com sabor a areia branca, eu, a criança brincando com a máquina de escrever que mais tarde, muitos anos depois, me foi oferecida, o teclado teus seios rangiam durante a ténue luz do quarto nu embebido no divã com a colcha azul com flores em sorrisos doirado, o papel, na ranhura, amarrotado, como hoje, a pele do teu corpo, deitado, sobre uma das prateleiras da biblioteca, estás misturada em três partes de ti e uma de livro, pareces o inferno quando corríamos calçada abaixo, quando o teclado de ti escrevia palavras lindas, como imagens a preto-e-branco, sempre, sempre antes de acordar o pôr-do-sol...
Tu, e, eu,
Nunca.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

… e ardes dos livros envenenados...

foto de: A&M ART and Photos

... e ardes como pedaços de papel sobrevoando a poeira madrugada dos livros envenenados...
o putrefacto poema vagueia como infinitos gemidos suspensos na árvore do desejo
dormem como cadeiras vazias as lâmpadas húmidas do corpo teu mergulhado em sons melódicos
ardes como os beijos
que nascem nos lábios do amanhecer,

Amor mergulhado em silêncio poeira que a insónia deixa nas flores com esqueleto de pedra...
uma mão traiçoeira sobe cuidadosamente os degraus da manhã de porcelana
… e ardes
como invisíveis sílabas na lareira da fome
ou de uma janela o cansaço viver como cordas de nylon em pingos de sémen,

Oiço-te na sonolenta despedida do calendário de parede
e ardes...
como pequenas palavras em suor teus seios de ébano
percebo o teu olhar entre as cinzas da lareira nocturna...
nas flores com esqueleto de pedra encarnada,

… e ardes
dos livros envenenados...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó