terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O mendigo dos tempos modernos

Sou um mendigo dos tempos modernos,
Culto e inteligente e prostituo-me intelectualmente, sento-me à mesa do café e converso de politica e converso de economia e que os mercados são uma merda e que se fodam todos, falo aos meus amigos de literatura e poesia e pintura, já fumei toda a merda que há para fumar e leio muito, e li também muita merda, e leio muito porque estupidamente o meu pai quando eu menino dizia-me que ler era muito importante, mas o meu pai esqueceu-se ou não previu a chegada do vinte e cinco de abril e que uma cambada se ia instalar pelas árvores dos jardins, meus deus, tantos macacos em tão poucas árvores, e assim atualmente não importa se li muito ou se tenho habilitações,
Importam as árvores,
Falo aos meus amigos de António Lobo Antunes, e meus deus, o que seria de mim sem os livros dele, falo aos meus amigos de Saramago Cesariny AL Berto Luís Pacheco Milan Kundera Proust Gogol Tolstoi Dostoevsky, falo aos meus amigos de literatura Cubana, e gosto e adoro, falo aos meus amigos do Big Bang e da partícula de deus e de hipercubos,
Mas continuo a ser um mendigo dos tempos modernos que pediu a isenção de taxa moderadora, um mendigo dos tempos modernos que depois da palestra tem direito a tomar café e água sem gás e um maço de cigarros, porque os meus amigos são porreiros, e é tão fácil ser prostituto intelectual,
Faço programas em folhas de cálculo e tive lições de estruturas, foi um prazer estudar aços e ligas metálicas e termodinâmica e física e matemática, mas o que eu gosto,
Mas o que eu gosto é de ser prostituto intelectual e falar aos meus amigos de literatura e falar aos meus amigos de poesia e falar aos meus amigos de pintura, escrevo umas merdas e pinto outras tantas, e leio
E leio muito,
E antes de me deitar olho-me ao espelho e do outro lado um filho da puta qualquer sorri-me e eu sorrio-lhe e pergunta-me E pergunta-me se sou feliz,
E que mais eu posso querer Respondo-lhe Eu tenho tudo,
E claro que sou feliz porque enquanto tiver livros do António Lobo Antunes para ler sou muito feliz,
Sou um mendigo dos tempos modernos, Culto e inteligente e prostituo-me intelectualmente, sento-me à mesa do café e converso de politica e converso de economia e que os mercados são uma merda e que se fodam todos,
Vou fazendo uns bicos (e o escritor alerta que bicos são pequenos trabalhos e não broches),
Tomo comprimidos para dormir receitados pelo meu amigo psiquiatra, porque sendo um mendigo profissional dos tempos modernos, tenho alguns amigos porreiros,
E vou fazendo uns bicos e confesso que sim,
Sou feliz,
Enquanto tiver livros de António Lobo Antunes para ler, muito feliz,
E que deus lhe dê muita saúde.

Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

O fim das minhas palavras


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Sento-me
Cruzo os braços
E espero que o tempo se alimente do meu corpo
E quando chegar a noite

E quando chegar a noite
Uma finíssima folha de poeira se alicerce nos meus olhos
E todas as minhas palavras

E todas as minhas palavras cessem
E todas as minhas palavras morram
Na garganta do poema
Crucificadas nas mãos de um texto ficcionado
E toda a minha vida
Um número de circo sem sentido

Sento-me
Cruzo os braços

E dou-me conta que morri

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

domingo, 15 de janeiro de 2012

Metade de mim


84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Metade de mim
Morta pela tempestade
A outra metade
Pendurada na parede de um quarto

Sem janelas
Para o mar,

Metade de mim
Carne podre
Pedacinhos de cartão amordaçados
No sangue da noite,

Metade de mim
Morta pela tempestade
A outra metade
Pendurada na parede de um quarto

Sem estrelas
Sem luz
Sem janelas
Para o mar,

Metade de mim…

À procura do cadáver
Da metade morta pela tempestade
Porque à metade pendurada na parede de um quarto
Falta-lhe a metade
A vontade
A saudade

À metade de mim
Sem vista para o mar

Sem janelas para o corredor
Depois de subir as escadas e alcançar a claraboia
Onde metade da metade de mim
Dorme abraçada a uma gaivota

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

E vem a noite


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

E vem a noite
E come-me os olhos e os braços
E come-me o coração,

E transformo-me numa tela negra
Semeada de lágrimas
E estrelas,

E vem a noite,

E tudo o que me pertence
Incluindo eu
Finíssimos grãos de poeira gatinhando no corredor
À procura de uma porta de saída,

À procura do dia.

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

sábado, 14 de janeiro de 2012

As lágrimas do tejo

Já alguma vez te disseram que tens o coiso grande As últimas palavras de Genoveva antes de abrir os braços e olhar para o céu e subir e subir e subir até se desfazer em pétala de rosa e transformar-se em estrela,
- O tejo em lágrimas,
E todas as noites a estrela brilha e brilha e brilha na janela da saudade e ele olha o mar e um cacilheiro amarrotado na solidão desfaz-se em pétala de rosa,
- Já alguma vez te disseram que tens o coiso grande,
O tejo em lágrimas nas mãos de Genoveva e antes de abrir os braços e antes de olhar para o céu e antes de subir e subir e subir… e antes de desfazer-se em pétala de rosa O tejo em lágrimas,
- O tejo em lágrimas nas mãos de Genoveva,
O coiso grande nas mãos de Genoveva e o mar desapareceu nos olhos da noite…

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

14 de Janeiro – Wordsong (AL Berto)


Desenho de Francisco Luís Fontinha e música de Wordsong (AL Berto).
Wordsong é um projeto multimédia de Pedro d´Orey (Mler If Dada), Alexandre Cortez (Rádio Macau), Nuno Grácio e Filipe Valentim (Rádio Macau).

Fronteira


Fronteira (59,4 x 94,1 – Francisco Luís Fontinha)

Nunca percebi, não percebo e tenho medo de perceber qual a fronteira que separa a amizade do amor, tão pouco sei se existe uma fronteira ou se é apenas um fantasma da minha cabecinha de parvalhão.
Porque sempre fui e serei um parvalhão abraçado ao medo…

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

A cidade

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

A cidade tem os seus medos
Tem a noite
E portas e muitas portas
De saída
De entrada
Na garganta da cidade
As escadas para o sótão
A claraboia com vista para o tejo
Vão e vêm as sombras cansadas com as mãos na algibeira
Entram nas portas de entrada
Fingem que dormem
E os sexos embrulhados em papel de parede
Descem e mergulham no pavimento encharcado
À porta de saída
Uma minissaia presa a um candeeiro
À porta de entrada
Um magala à espera de um cigarro
E na rua junto ao rio
Um automóvel abraçado aos silêncios de Belém
Olha com desdém para a minissaia
E sorri ao magala
O magala entra e senta-se
E os silêncios de Belém
Acariciam-lhe as pernas até que a noite poise neles
E os misture num fumo branco de medo
E sémen

A cidade tem os seus medos
Tem a noite
E portas e muitas portas
De saída
De entrada

A cidade é uma merda.


A caixinha de madeira


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Se estou deitado e nunca mais me levantarei desta caixa de madeira pergunto-me Fato e gravata e sapato pontiagudo e barba desfeita para Quê,
- Possivelmente vou a alguma entrevista de emprego ou pior Ser submetido aos olhos de deus quando chegar à presença dele e se algum dia lá chegar ele vai olhar-me e sussurrar-me Que lindo,
Nem na morte sou feliz Foram as últimas palavras que lhe ouvi antes de cerrar os olhos numa tarde em Luanda quando os machimbombos engasgados junto à Maria da Fonte o avô domingos descruzava os braços e fazia-se ao caminho e desfeito em silêncios e nuvens de algodão começava a cair-lhe a noite sobre os ombros largos devido aos rolos de pinheiro que carregou durante anos e anos e anos E para quê,
- Que lindo
E ao chegar ao portão de entrada o neto em abraços Que lindo,
- E para quê se nunca mais me levantarei desta maldita caixa de madeira e eu que sempre disse que não queria fato nem gravata nem sapatos porque me aleijam e porque nunca gostei de estrear calçado nem calças Sou alérgico sabe, e estes gajos contra a minha vontade Nem na morte sou feliz,
Em abraços Que lindo e poisava no bairro uma finíssima pelicula de malmequeres e beijos e ais e
- Que lindo,
E porque só desfaço a barba um vez por semana Era preciso desfazerem-me a barba e vestirem-me um fato e a gravata Horrível branca com bolinhas encarnadas que olhando-me ao espelho pareço o chulo da esquina junto ao rio com um caderninho na mão a apontar as horas das cabras saltitantes que pastam nos lençóis inseminados com sémen Chinês porque sempre é mais barato nas pensões decrépitas da cidade agoniada pelo fumo dos cigarros e lágrimas de crocodilo,
- E pergunto-me porquê Que lindo eu aos olhos dele E nem sei se o deva tratar por senhor ou majestade Não sei,
Ai menina Gosto de si E perguntava-lhe em voz de defunto se queria casar com ele Nem morta Era o que me faltava Casar-me com este nojento guardião de crocodilos em pau-preto e conchas compradas em São Tomé e Príncipe,
- Possivelmente vou a alguma entrevista de emprego,
E não casei com ele,
- Só pode ser uma entrevista de emprego porque caso contrário não me enfeitavam desta forma esquisita e que sempre detestei e Horrível branca com bolinhas encarnadas,
Descruzava os braços e fazia-se ao caminho e desfeito em silêncios e nuvens de algodão começava a cair-lhe a noite sobre os ombros largos devido aos rolos de pinheiro que carregou durante anos e anos e anos até que decidiu rumar a Luanda e durante anos e anos e anos a passear machimbombos pelas ruas,
- E não casei com ele e hoje arrependo-me Horrível branca com bolinhas encarnadas E hoje arrependo-me e hoje poisa sobre mim a solidão e as noites de inferno que entram pela janela e se deitam no meu colo e eu e eu afogo-lhe os cabelos e penso nele deitado numa caixa de madeira com a barba desfeita e um fato e uma gravata e sapatos pontiagudos,
Horrível branca com bolinhas encarnadas.

(texto de ficção)