Talvez ontem tenha
acontecido o que vai acontecer hoje.
À janela
Não sabíamos quem éramos,
apenas tínhamos a perfeita noção que cada um de nós, escondia no peito a janela
que nos dava acesso aos cheiros e aos sabores do mar; um pequeno barco, ensonado
ainda, galgava os socalcos dos sonhos e a Primavera tinha acabado de regressar.
Não sabíamos e somos
ainda, veleiros perdidos neste mar de enganos, de cidades adormecidas pelas primeiras
chuvas do Inverno, e da janela que trazíamos ao peito, às vezes, ouvíamos o
silêncio do desejo galgando a montanha do prazer.
Não sabíamos, não
sabíamos quem éramos,
Da casa sem janela
Éramos nós.
Éramos nós os jardineiros
da poesia que a cada dia, em cada pedaço da manhã, deixávamos sobre o perfume
das roseiras as últimas palavras da noite.
Ouviam-se então as lamentações
do desejo da carne. Rezavam, imitavam os rochedos com os lábios pincelados de
além-mar sem ninguém, o furor da madrugada, esquecida numa qualquer mesa de um
bar, acordava.
A casa, a casa não tinha
janelas, tão pouco os gemidos teus poderiam algum dia, conhecer,
A luz do dia.
E éramos só nós, e em
cada um de nós, uma casa, uma casa sem janelas.
O corpo – em gemidos I
Não sabíamos se éramos. Na
minha mão escondias-te, semeava sobre a tua pele pequenos círculos de luz, pequenas
lágrimas cinzentas que dos meus lábios acordavam, como quando acorda sobre o
teu olhar a primeira estrela da manhã.
Se éramos, depois o
soubemos.
Pequenas avenidas habitam
o teu corpo, avenidas de silêncio quando sabíamos que todo aquele silêncio,
Era apenas um poema desenhado
no teu seio esquerdo; maré de engano, cidade perdida neste longínquo destino,
Sem saber,
Desconhecendo se éramos e
não o sabíamos, ou se apenas não sabíamos que éramos.
O corpo – gemidos II
O clítoris do engano. E se
o fomos, em teu corpo o seremos, eternamente o desejo.
Alimentava o teu cio com
os livros que li, com os livros que um dia escreverei, e percebia, e percebia
que aos poucos, muito lentamente, uma nuvem de veneno se desprendia dos teus
lábios, eu bebia-o,
O morria sobre ti.
E ressuscitava anos mais
tarde,
Abraçado ao teu cabelo.
O quadro sem nome
O estranho homem, que não
sabíamos quem era, e muitos anos depois, acordou no quarto ao lado, sem
perceber que já tinha sido, o que vai ser hoje.
Na parede escondia-se, na
parede se tinham esquecido dele.
Lá fora, lá fora apenas a
última geada da noite nos esperava, e ele, sem nome, dizia-nos que ser homem
estranho, vestido de quadro, finalmente, era um orgulho.
Orgulho.
O estranho, que um dia
será, quando depois percebeu que já o tinha sido,
Levantou-se,
Despiu o quadro,
Sentou-se,
E hoje,
E hoje dorme sobre uma
lápide de sono.
Mesmo assim, o clítoris do
engano. E se o fomos, em teu corpo o seremos, eternamente o desejo.
Uma fenda de luz no teu
olhar
Inventa-se em ti, quando
ainda o éramos, inventa-se em ti a melodia da ribeira a contornar a ponte, e
que vai galgando cada pedaço do teu corpo, para…
Anos mais tarde,
Chegar finalmente ao mar.
O beijo
Que foi. Que foi dos
lamentos do que ainda somos, por engano, almas esfomeadas, almas desventradas
pela sombra, almas mortas, em corpo vivos, em corpos que buscam o prazer nos
segredos do mar.
O beijo que era, ou será
se foi, enquanto não o era até que soubemos que junto ao rio, até que soubemos
que junto ao rio,
O beijo,
Que foi, deixou de o ser.
Hoje é um vadio
ambulante, hipotecou todas as palavras numa livraria qualquer, e de beijo que
foi,
Hoje,
É o beijo que será quando
cair a noite sobre o que éramos; e ardeu neste pedaço de papel.
29/07/2023
Francisco