terça-feira, 18 de abril de 2023

O menino do poeta

 Dilacerado corpo

Que dormes no Oceano de espuma

Corpo enforcado pelo luar da madrugada

Sentado nesta pedra fria e escura

E que no tempo se afunda.

 

Corpo coitado

Coitado dele…

Coitado do silêncio

E das tristes tardes junto ao rio

Coitado

Coitado do poeta

E do menino do poeta…

Coitado do menino em fastio

Perdido nas esplanadas da insónia.

 

Corpo cansado

Às voltas

Que não voltam

Das voltas que nascem no horizonte

Coitado do menino

Do menino do poeta

Coitada da montanha triste e só…

Coitada… coitada da avó e da neta.

 

Corpo dilacerado

Quando se esconde nas catacumbas de um falso sorriso

Corpo meu

Corpo sem juízo…

Poeira do meu corpo

Corpo teu…

Do teu que não tenho

O meu próprio corpo.

 

Duzentos e seis ossos

Alguns gramas de carne putrefacta

Carne do meu corpo

Do meu corpo

Que corpo?

Que raio de corpo

Precisa desta carne

Poeirenta

Bolorenta

Em decomposição lenta…

 

Sentado aqui

Descalço ali

Olhando o mar em declínio

Sem barcos

Nem marés

Nem bonés…

Cabeças ao vento

Cabelo prisioneiro das nuvens encarnadas

Ai que silêncio me escuta

Em pedaços de areia

Em pedaços de cicuta.

 

Dilacerado corpo

Sem corpo para venda

Palavras

Palavras

De que o meu corpo se alimenta

E bebe a cicuta

E não se lamenta…

Da tristeza das flores

Do sorriso dos pássaros…

E das abelhas

Que nem são flores

Nem são pássaros

Mas são abelhas em flor.

 

E chove dentro do meu corpo

E as janelas do meu corpo

Estão encerradas

São lâminas de saudade…

São lágrimas.

 

E chove nas tuas mãos

Menina do mar

Menina dos lábios de mel…

E das abelhas

Que nem são flores

Nem são pássaros

Nem papagaios de papel

Coloridos

Que uma mãe construía para o menino

O menino do poeta

Do poeta menino

Em calções…

Puxando um triciclo com assento em madeira

E volante de sonhos.

 

Dilacerado corpo

Este corpo que invento todas as manhãs

Deste corpo que cuido quando me deito

Neste corpo onde habitam tantos outros corpos

E não me queixo das estrelas

Nem dos barcos de esferovite…

Corpo em poema

Da cama em poesia

Ao corpo sem corpo

Ao corpo de cada dia.

 

Depois tenho os gonzos das portas do meu olhar…

Todas…

Todas dilaceradas

Dilacerado corpo

Dos volantes e das vielas

Porcas e parafusos

Fusos

Sei-te lá que mais exista dentro deste meu pobre corpo

Depois oiço um pequeno gemido

Um enorme grito de revolta

A Terra não se cansa de girar

O cão do vizinho não pára de ladrar…

E tudo é pó

E tudo se transformará em poeira

E o ontem não volta.

 

 

 

Alijó, 18/04/2023

Francisco Luís Fontinha

O velho e o mar

 Invento o sono

Nos teus lábios de doce mel

Quando a manhã se ergue.

Invento a solidão

Apenas porque preciso da solidão

Apenas…

Apenas porque eu sou a solidão.

 

Invento o Inverno

Invento a geada

Queixo-me da Primavera

Enquanto me perco em invenções…

A Terra gira

E Deus… olha-me

Incrédulo

Olha-me como se eu fosse um louco

Ou “o velho e o mar” de Hemingway

E depois…

Depois percebo que sou o louco

E sou realmente o velho

O velho sem o mar…

 

Invento este vadio sono

Na esperança de que a ausência me leve

Ou o vento me leve

Ou o vento me traga

A insónia

Invento tudo isto

Na esperança de um dia me sentar em frente ao mar…

E esperar que alguém me venha resgatar.

 

 

 

 

Alijó, 18/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Janela da minha infância

 Desta janela

Oiço o mar da minha infância

Desta janela oiço os pássaros da minha infância

Desta janela

Brinco com os meninos da minha infância,

 

Através desta janela

Regressam a mim os cheiros

Os sonhos

E todos os cheiros da minha infância…

E desta janela… toco nos papagaios em papel da minha infância.

 

 

Bragança

18/04/2023

Francisco

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Anjo azul

 Semeio nos teus lábios de pétala

Os beijos que o luar desenhou

Beijo os teus lábios em pétala…

Flor do meu castelo

Vinhedo com vista para o Douro…

Socalco da tua maré em sono

Enxada do cansaço

No teu corpo misturado

Semeio nos teus lábios

O abraço

A palavra que grita

E grita

Grita…

 

A palavra em finos traços

Gemido na madrugada

Semeio nos teus lábios

A Primavera

E todas as árvores que acordam com a Primavera

Coração ao vento

Enquanto a barcaça do desejo

Rodopia em pequenos círculos

Semeio a palavra

Semeio

Semeio na tua mão

O silêncio

Enquanto o teu anjo azul escreve no teu olhar…

Amo-te

Enquanto o teu anjo azul…

Pincela os teus lábios de doce mar

E uma gaivota em liberdade…

Voa em direcção ao Sol

Sem perceber que o Sol...

Que o Sol é a paixão disfarçada de luz.

 

 

 

Alijó, 17/04/2023

Francisco Luís Fontinha

domingo, 16 de abril de 2023

Olhos em cereja

 São as cerejas

Meu amor…

São as cerejas os olhos da Primavera,

São as cerejas meu amor,

São de cereja os teus olhos de mar…

Dos teus olhos em Primavera.

 

São em cereja

No encarnado desejo

São em cereja meu amor

O teu beijo

São de cereja meu amor…

Os teus lábios em cereja.

 

São as cerejas

Meu amor…

São as cerejas os olhos da Primavera,

Dos teus lábios em mel,

Dos teus lábios em cereja…

Meu amor de cereja.

 

 

Francisco

16/04/2023

O poema do amor

 O poema

Do amor

Do poema de amor.

 

O poema simples

No poema apaixonado

Entre poemas

Na cama

deitado

No poema

Puxo de um poema…

Fumo-o…

Como se fumam todos os poemas

Poemas em mortalha

Poemas ao cachimbo

Chique

Nada chique

Com um pouco de gelo

Poemas de amor em lume brando

Quinze minutos no forno

E pronto a consumir

Poemas congelados

Semifrios...

 

Poemas de amor

Do amor em poema

Em pessoa do amor

Junto à maminha esquerda.

 

Deste e daquele poema

Daquela ou desta janela

O poema

Em amor

Do amor

Do amor em poema.

 

Do amor às palavras

Às palavras de amor

O vento

Na tromba do poeta

Que chora

Que está em dor

Do poema

Quando este poema

Nascer do amor

No amor morrerá

Como morrem todos os poemas que nascem do amor.

 

No poema

Ao amor

Do amor entre flor e pedra e sombras de pedra

Em pedra

Em grão

Todo o poema

Todo o poeta

Tem fome

Quer pão

Quer palavras

Poemas na brasa

Poeta

Cancelas

E cabras.

 

Se o poeta morre

É herói

Condecorado postumamente…

Antes disso

Miserável pela cidade

Senta-se sobre um poema

Descasca o poema

E come-o

Come poemas

Come poemas

Olha que comendo poemas vais engordar

Nasce o sol

Põe-se o sol

E de todos os poemas comidos

De todos os mastigados

E de todos os poemas fumados

Este

Este pobre poema

É o mais saboroso

De todos os poemas desejados.

 

Vem a chuva

Traz um poema

Traz um poema e bebe o veneno do poema

Fuma o poeta

Come-o até se o quiseres…

O maldito do poeta

O maldito do poema

Mas não bebas as pétalas do poema

Não as fumes

Por favor

Não

Não

Não o faças.

 

Um poema

Em amor

Do poeta amorado

Este pobre poema

Deste pobre poema fumado

Abre a janela

Chama o poema do mar

Dá-lhe um beijo nos lábios

Sim

Nos lábios do poema

Do poeta

Na noite em poesia.

 

Do amor em poema

Entre poemas

Nos poemas

Que o amor do poeta

Escreveu no rabo do poema

Junto ao crucifixo do poeta

Senta-se

Morre

Levita e ressuscita ao terceiro dia junto ao rio

Vai à algibeira

Procura um poema

Fuma o poema

Depois

Procura na outra algibeira

A dose diurna do outro poema

Algumas gotículas

E bebe toda a porção…

O poema contorce-se

Distorce-se

Abraça-se ao poeta e à esferográfica do poeta

Do poema

O morto poeta

Quando o amor do poema

É o próprio amor do poeta

E um pedaço de sémen poético poisa sobre a mão do poema

O poeta fuma-o

E do fumo…

E do fumo mais um poema

Poema em fumo

Lume brando

Junto ao rio

Gargalhadas

Nojo

Nojo dos poemas de fumo.

 

O poema

Do amor

Do poema de amor.

 

 

Francisco

16/04/2023

Tinta permanente

 Pega na tua melhor roupa

E veste-a.

Depois

Procura a espingarda de tinta permanente,

Uma pequena folha em papel…

E dispara.

Mata tudo aquilo que dentro de ti habita,

Dispara,

Dispara…

E suicida-te na paixão das palavras.

Não tenhas medo de morrer…

Não tenhas medo em morrer acorrentado às palavras,

Dispara,

Mata;

Mata tudo aquilo brilha quando nasce o dia…

Mata e dispara

Puxa o gatilho

Porra

Mata-me

Caneta dum caralho.

 

Veste a tua melhor roupa.

Penteia-te e barbeia-te,

Calça os teus melhores sapatos,

Depois,

Puxa de um cigarro,

Acende o cigarro,

E dispara,

Mata tudo,

Mata.

Mata todos os poemas de merda que escreveste.

Não tenhas medo de puxar o gatilho da tua esferográfica…

 

Mata.

Mata-te.

Mata-os e mata as flores do teu canteiro sonolento,

Dispara,

Não tenhas medo de disparar essa velha espingarda,

Não tenhas medo de o fazer,

Mata tudo.

E depois mata-te…

Puxando o gatilho de tinta permanente.

 

 

Francisco

16/04/2023