domingo, 16 de abril de 2023

Tinta permanente

 Pega na tua melhor roupa

E veste-a.

Depois

Procura a espingarda de tinta permanente,

Uma pequena folha em papel…

E dispara.

Mata tudo aquilo que dentro de ti habita,

Dispara,

Dispara…

E suicida-te na paixão das palavras.

Não tenhas medo de morrer…

Não tenhas medo em morrer acorrentado às palavras,

Dispara,

Mata;

Mata tudo aquilo brilha quando nasce o dia…

Mata e dispara

Puxa o gatilho

Porra

Mata-me

Caneta dum caralho.

 

Veste a tua melhor roupa.

Penteia-te e barbeia-te,

Calça os teus melhores sapatos,

Depois,

Puxa de um cigarro,

Acende o cigarro,

E dispara,

Mata tudo,

Mata.

Mata todos os poemas de merda que escreveste.

Não tenhas medo de puxar o gatilho da tua esferográfica…

 

Mata.

Mata-te.

Mata-os e mata as flores do teu canteiro sonolento,

Dispara,

Não tenhas medo de disparar essa velha espingarda,

Não tenhas medo de o fazer,

Mata tudo.

E depois mata-te…

Puxando o gatilho de tinta permanente.

 

 

Francisco

16/04/2023


 Um dia, um dia seremos poeira, um dia seremos a fotografia na secretária de alguém, um dia…

Um dia somos tudo, ao outro dia… somos nada.

Pequena espada de luz

 A espada de luz

Que aos poucos se alicerça no meu peito

É a chave que a noite me dá

É a chave que a noite me tira

A espada de luz

Que invento nos meus olhos

Será o veneno dos meus sonhos

Enquanto eu tiver sonhos

Enquanto eu tiver vida,

 

Enquanto eu tiver noite

Enquanto eu tiver olhos

Enquanto esta espada de luz tiver vida

Vida própria

Emoções

Cansaços

E desilusões,

 

Esta pequena espada de luz

Levar-me-á ao silêncio dos teus olhos

Enquanto os teus olhos

Enquanto esta espada de luz

Tiverem vida

Enquanto o meu peito

For um pedaço de mármore abandonado

Um pedaço de mármore sem memória.

 

 

 

16/04/2023

Francisco Luís Fontinha

sábado, 15 de abril de 2023

A fogueira

 Em que penso

Em nada

Penso que gostava que todos aqueles objectos

Amontoado de coisas e loisas…

Literalmente na fogueira.

Penso na alegria

De me sentar numa pedra

Uma pedra simples

E sorrir

Enquanto tudo arde.

E penso que ainda te amo

Claro que ainda te amo…

O facto de teres partido

Nunca deixarei de te amar

Mas odeio tudo aquilo que te pertenceu.

Odeio olhar-te dentro de um caixilho

Nem sequer te olho e finjo que não te olho

Odeio todas as coisas que foram tuas

E também odeio as minhas coisas (todos os meus livros)…

E não faço nada do que me pediste…

E o que faço

Faço-o ao contrário daquilo que me pediste.

 

 

15/04/2023

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Abelha em flor

 Abraço-te

Nuvem de espuma

Flor sincera das manhãs em delírio

Abraço-te corpo pincelado em desejo…

Quando mergulhas nos meus olhos

E te misturas no meu daltonismo,

 

Abraço-te meu poema em construção

Palavra que lanço ao vento

Semente de beijo

Que os teus lábios acolhem…

Abraço-te

Na misera escuridão das minhas mãos…

 

Abraço-te

E acaricio-te como se fosses um livro

Uma página de mar

Um livro que leio

Um livro onde escrevo

Um livro em paixão,

 

Abraço-te

Sob todas as constelações do Universo

Criação de Deus

Que criou a mulher

Que criou o abraço

Abraço-te meu amor com o meu abraço…

 

Abraço-te

Nas primeiras páginas da manhã

Abraço-te quando dos lábios do pôr-do-sol…

Uma abelha em flor

Também ela

Te abraça… também ela… te abraça e deixa um pedacinho de mel nos teus doces lábios.

 

 

 

Alijó, 14/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Partida

 Escondíamo-nos dos tristes candeeiros nocturnos

Quando a paixão espiava o acordar da noite,

Sabíamos que dentro daquele rio,

Envenenado até à foz,

Escondia-se o inferno de amar,

E cada palavra que semeávamos na árida terra de ninguém…

Uma gaivota de luz poisava-nos sobre os ombros estonteantes,

 

Éramos novos,

Passávamos a tarde a contar cacilheiros,

Linhas rectas traçadas no olhar…

E só acordávamos do outro lado do rio,

Quando ouvíamos os apitos em despedida…

A despedida,

A eterna despedida,

A ausência do corpo…

Quando o corpo pede o silêncio,

E da boca,

Chegava-nos o desejo…

E um longo beijo se erguia na alvorada,

 

Era triste o teu olhar,

Madrugada da simplicidade…

Eram tristes as manhãs junto às tuas mãos,

Quando do teu rosto,

As lágrimas se despediam da tua sombra,

 

Eram tristes as nossas tardes,

Como eram tristes todas as nossas bebedeiras e voos frenéticos junto ao mar…

Como ainda são tristes as tuas palavras,

Que escondo dentro de mim,

Como se pertencessem a uma lápide de luz…

Invisível,

Que apenas eu tenho acesso,

 

Eram tristes os poemas que te escrevia,

Como tristes se sentiam as minhas esferográficas…

Quando percebiam que te ia escrever,

E no entanto,

Escrevia-te…

Sem saber se junto ao rio,

O teu rosto de gaivota,

Ainda brinca com as crianças…

Ou se também ele já partiu,

 

Éramos tristes,

Éramos a ausência de uma cidade que constantemente vomitava silêncios…

E sempre que um de nós tombava no pavimento do medo,

Sentíamos a presença das estrelas que nos davam a mão…

E nos levantava…

Ora a mim,

Depois…

Depois,

 

Partiram todos os milhafres do nosso olhar,

Caravela quinhentista,

Gavião da minha tristeza,

Partiram todos…

Partiram sem se despedirem de nós…

Assim…

Como partem as andorinhas quando termina a Primavera,

Nunca se despedem,

Partem.

 

 

 

Alijó, 14/04/2023

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Desta cidade

 Procuro dentro deste sono adocicado

Com silêncio de uísque

E perfume de incenso

Os teus doces lábios de mar

Das marés junto aos rochedos.

 

Das barcaças que partem

E levam os corações partidos

Pedaços de açúcar

Pedacinhos de néon

Que dorme na cidade.

 

Desta velha cidade

Desta cidade envidraçada

Com espelhos e montras iluminadas

E do teu corpo

As minhas mãos acorrentam-se ao teu ventre.

 

Procuro nesta cidade

O doce sono salgado

Dos teus doces lábios de mel

A fina areia do Mussulo…

Quando um menino se despede do dia.

 

Procuro

Dentro

De ti

Procuro nas tuas coxas…

O silêncio da Primavera e o suspiro das árvores.

 

 

 

Alijó, 13/04/2023

Francisco Luís Fontinha