quarta-feira, 12 de abril de 2023

Cartas de amor

 Já ninguém escreve cartas. Já ninguém escreve cartas de amor, cartas perfumadas… papel com corações, janelas que se abriam e só se encerravam depois da alvorada.

E enquanto escrevia cartas, sentia no rosto os pingos da ausência, sentia no rosto as lágrimas embalsamadas das cartas que escrevia, das cartas que guardava, já ninguém escreve cartas, já ninguém… me envia cartas.

E às vezes, muitas vezes, pergunto-me se recebesse cartas… o que faria eu?

Provavelmente, não as abria.

Enterrava-as junto ao mar, ou muito mais simples, queimava-as antes de abrir.

Uma vez por semana, esperava o regresso do carteiro, que me trazia uma carta perfumada, uma carta escrita na alvorada, hoje, hoje já ninguém escreve cartas, já ninguém escreve cartas de amor.

Cartas perfumadas. Papel com corações desenhados, fotografias a preto e branco, um telefonema de dois em dois dias… e claro, uma vez por semana, o amigo carteiro trazia-me cartas, cartas perfumadas, cartas de uma ausência, a minha, quase sempre não as lia, quase sempre as guardava na gaveta dos sonhos, por abrir; depois, dias depois, quando eu regressava das minhas viagens à lua, abria-as todas, uma por uma, e enganava a ressaca com as palavras de amor que recebia.

Ai as cartas, as cartas perfumadas, as cartas da ausência, nas cartas onde me escondia, nas cartas onde eu sabia que tinha um abraço, um beijo, um… quase nada.

Cartas.

As ausentes e as remetidas, as cartas recebidas e expelidas contra o sono, e durante toda a noite ouvia o ranger dos meus ossos, e durante a noite

Cartas, recebia cartas.

Aos ausentes, aos mortos que ainda hoje, alguns, me enviam cartas.

Cartas perfumadas, cartas de uma ausência enquanto a noite entrava em mim e sentia no meu corpo as amarras do cansaço, e sentia no meu corpo o brotar das flores de aço e dos pregos que aos poucos,

Das cartas em sono,

O meu regresso da lua.

Coitadas das cartas, coitadas…

Hoje, hoje já ninguém escreve cartas;

Cartas de amor.

Cartas perfumadas.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

12/04/2023

Poema vaginal

 Bebo pouco.

Bebo enquanto a noite se despede da noite anterior

Enquanto a noite anterior se despede da noite passada

Bebo pouco

Fumo muito

Coisas estranhas

Coisas esquisitas

Bebo coisas

E fumo uísque de malte.

 

Sento-me nesta cadeira sem nome

Onde posso observar as caravelas

E os petroleiros a entrarem no Tejo

Bebo pouco

Muito pouco

Bebo alguns cigarros

E fumo muito

E fumo uísque de malte.

 

E escrevo.

Escrevo muito

Bebo pouco

Fumo coisas e loisas

E escrevo

Escrevo-te

Escrevo-me

E escondo-me dentro deste Oceano de prazer

Depois oiço os gemidos das tuas coxas

Como gonzos da madrugada

Quando se masturbam

Bebo

Fumo

E escrevo

E escrevo-me

E escrevo-te

Não escrevendo

Enquanto bebo todos os cigarros

E enquanto fumo todo o uísque de malte.

 

A noite traz-me os parêntesis rectos da equação do sono

E da derivada vaginal do teu corpo

As palavras que fumo

O fumo das palavras

Também as bebo

E beijo…

E também as como.

Gemes em pequenos silêncios de medusa

Orquídea dos meus poemas

Bebo coisas e loisas

Fumo todo o uísque dos teus lábios

E invento círculos de luz

Nos teus seios maternais.

 

Bebo

Muito pouco daquilo que fumo

E enquanto bebo todos os cigarros

E enquanto fumo todo o uísque dos teus lábios

Peço perdão ao teu cabelo

Peço desculpa aos teus olhos…

Peço… um beijo aos teus lábios.

 

 

Alijó, 12/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Os gritos da alma

 Habita em ti

Minha doce flor em Primavera,

A ribeira da paixão,

Onde banho a minha mão

Quando escrevo no teu corpo

Amo-te…

E desenho no teu corpo

Desejo-te…

 

Habita em ti

A poesia das palavras,

Melodia matinal

Quando do teu corpo

Acordam as sanzalas da minha infância.

 

Abraço-me em ti

Pedacinho das marés envenenadas,

Poema das tardes à espera do pôr-do-sol…

Habita em ti,

Flor cansada,

As estrelas dos teus olhos

E as estrelas da madrugada.

 

Habita em ti,

Coração das noites prateadas,

Minha canção de embalar…

Habita em ti todo o silêncio do mar…

Todo,

Quando habita em ti a paixão

E o verbo desejar.

 

Habitam em ti,

Minha Princesa das noites de insónia,

As sílabas que o poema inventa,

E dos teus lábios,

E dos meus lábios…

Acordam os gritos da alma...

 

 

 

Alijó, 12/04/2023

Francisco Luís Fontinha

As palavras de amar

 Poisas as tuas mãos nocturnas

No meu corpo em desejo

Meu doce mar

Das acácias em flor,

 

Poisas as tuas mãos

Meu amor,

No meu corpo em perfeito movimento

Em torno de um eixo

Em perfeita rotação,

À espera do vento

… na espera de um beijo,

 

Poisas as tuas mãos

Meu pedacinho de mel

Das madrugadas em poesia

Enquanto esperamos o nascer do dia…

Enquanto esperamos a ausências das estrelas…

Que deixaste no meu corpo,

 

Poisas as tuas mãos

Pequeno silêncio

Dos mares nunca navegados

Que dos meus lábios em poisa

Que nos meus lábios acorda…

O luar,

 

Poisas as tuas mãos

Pirâmide do Egipto

Milhafre em dor,

Poisas as tuas mãos

Meu amor,

Enquanto a ribeira da paixão

Deixou de correr para o mar…

E do meu corpo em construção

Acordam as palavras de amar.

 

 

 

Alijó, 12/04/2023

Francisco Luís Fontinha

O livro da maldição

 Este livro

Que leio

E folheio

Que manuseio

Como se fosse mais um livro

Este livro

Onde escrevo

Onde durmo

Onde habito

Este livro

Deste livro

Do livro do meu viver.

 

Deste livro onde nasci

Neste livro onde cresci

E vivi

E brinquei…

Deste livro onde amei

E chorei

E gritei.

 

Deste livro a que chamam de vida

De viver

Deste livro de sofrer

Este livro

Entre muitos outros livros

Neste livro

Onde me sento

E escrevo

E olho o rio

E do rio vejo o mar

Deste livro de viver

Neste livro de amar.

 

Deste livro

Nos jardins junto à Torre

Dos barcos deste livro

Neste grande livro de partir

De correr

Deste livro de montanhas

De amores

De crianças sem asas

E de asas sem pássaros

Neste livro

Que seja deste livro

Que as minhas cinzas

Que das minhas asas

Se faça a vida

E se construa este livro.

 

 

 

Alijó, 12/04/2023

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 11 de abril de 2023

Multidão

 Acorrentados às frestas da manhã

O sono poisa na doce mão do transeunte ensonado

Vomita a fogueira da noite anterior

Da lareira onde arderam todas as palavras do poeta

E o poeta em dor

Sem o saber

Também ele acorrentado

Também ele ensonado

Também ele em lágrimas na fogueira da noite anterior

Senta-se na cadeira da insónia

E sonha

E pensa.

 

O que pensará o poeta acorrentado?

Que as noites são pedacinhos de pano

Em pequenas brincadeiras

Na algibeira do guarda-rios

Que enquanto olha para a ponte

Percebe que a multidão em fuga

Se dirige para o abismo?

 

Penso que não

Não pensando que a multidão

Toda ela

Toda a multidão

Se suicide nas mãos daquele Oceano.

 

Um cardume de sonhos

Viaja à velocidade da luz

Pensando que voa

Não voa

Porque enquanto pensava

O pensamento

Aquilo que o poeta pensava…

… morre quando a noite acorda.

 

E às vezes

Pensando que dormia no cacilheiro para a Trafaria

Acordava em Almada

Pensando que já era dia…

Quando ainda não era nada.

 

E para que pensas tu, poeta acorrentado?

Marinheiro das docas secas

Pedinte em decomposição

Quando do corpo putrefacto

Nasce uma gaivota de luz?

 

Não.

Não penses, cacilheiro dos lábios encarnados

Não penses

Não

Não bebas e não fumes e não fodas…

E claro

Não penses

Nem escrevas

O que pensas

Nem dias o que escrevas

E que pensas

Porque depois de pensares

Depois

Ai depois…

Não.

Não escrevas.

Não penses.

 

Multidão amiga

Pensante das madrugadas em flor

Consumidor de heroína

E de cigarros avulso

E de shots de liberdade

Junto ao rio

E se pensas

Um dia

Darás conta

Que os cacilheiros deixaram de ser os teus amigos…

Porque hoje os cacilheiros pensam

Porque hoje é terça-feira

E Lisboa é uma droga

É mulher

É bela

Muito bela

Mais bela que todas as belas das árvores da minha aldeia…

Porque pensa o poeta acorrentado?

Porque chora e pensa o poeta acorrentado

Filho da multidão

Irmão de Zeus

Irmão e pai

Dos que pensam

E daqueles que não pensam.

Amém.

 

A multidão pensante

Grita

Corta as correntes do sono

A multidão pensante

Pensa

Enquanto ele

O poeta acorrentado

Não pensa

Nem sabe o que pensa.

 

E os dias são as noites

Sãos os dias em que alguém pensa

Que quando regressar a noite

O pensamento se libertará da madrugada

E o poeta acorrentado

Enquanto bebe uísque…

… pensa

Que nunca pensou

Aquilo que pensa.

 

E se a multidão pensasse

E se o poeta acorrentado pertencesse à multidão

Os livros cresciam nos jardins

Como crescem as plantas de canábis

E crescem as almas que pensam.

Mas eu não gosto de pensar

Não gosto das palavras que escrevo

Nem dos desenhos que faço;

E enquanto espero sentado

Numa cadeira com tirinhas em plástico

Entretenho-me a contar as quadrículas

As brancas para o lado direito

As negras para o lado esquerdo…

… e os espaços entre elas…

Para os vizinhos que pensam

E que pensavam que nunca conseguiriam pensar.

 

O relógio morre.

A tua voz que pertencia aos meus pensamentos

Não pertence às vozes que pensam

Nem pensam as vozes a que pertencem…

E Deus?

O que pensará Deus!

O que pensará Deus de tudo isto?

Que sou louco

Porque desobedeço à multidão

E deixei de pensar?

E se eu pensar?

A multidão continuará junto a mim?

E claro,

E se Deus também ele,

Também eu,

Também o poeta engomado e acorrentado…

Não pensarem?

O que pensará o Diabo quando vai defecar

E percebe que o poeta acorrentado

É uma merda

Uma merda que pensa

Que fuma coisas

E bebe coisas

e…

… pensa

E que se fode o poeta que pensa.

 

 

 

Alijó, 11/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Pensamento

 Às vezes

Penso

Às vezes penso que deveria não pensar

E no entanto

Penso

Penso porque sou apaixonado pelo mar

Às vezes penso…

… não

Não o deveria fazer

Pensar dá trabalho

… e já não me dá prazer

 

Às vezes penso

Em coisas estranhas

Não as que fumei e fumo

Outras coisas

Outros pensamentos, queres tu dizer?

Outras coisas que não são bem coisas

São pensamentos

De pequenas coisas

E penso

Penso tanto…

… que deveria deixar de pensar

 

Penso porque Deus é tão mau

Mas tão mau…

Que às vezes

Que às vezes até penso

Penso que não sou filho dele

Mas penso

Penso tanto

Que das vezes que penso

Não penso

Mas se não penso

Não existo

E desisto

De…

… de pensar

 

Mas penso

Quando me ergo

Penso

Penso se eu terei uma força superior a nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado…

E penso

Penso tanto…

Se consegues vencer a gravidade, queres tu dizer?

Mas penso

Muito

Penso no gajo sentado em frente ao mar

Sentado numa cadeirinha de tirinhas plásticas

Com quadradinhos pincelados de negro e branco

Fuma e pensa

Pensa em quê, ele?

Que não

Não deveria pensar

Mas ele…

…, mas ele fuma e pensa

Como sabes que ele pensa?

Ou será que ele apenas fuma

Apenas não pensa

Ou apenas pensa

E não fuma

Será que ele pensa?

 

Às vezes

Penso

Às vezes penso que deveria não pensar

E no entanto

Penso

Penso

Penso

Penso que não deveria acordar

Pela manhã

e…

… e pensar.

 

 

 

Alijó, 11/04/2023

Francisco Luís Fontinha