Bebo o cálice de cicuta
Peço ao diabo que coloque
mais lenha na fogueira
Escrevo a última carta
Puxo de um cigarro
Desenho nos lábios da
paixão
A forca
Depois
Recebo a visita do
criador
Quer que eu me transforme
em árvore
Digo-lhe que não me
apetece
Digo-lhe que vá para o
caralho…
Sento-me à porta do
cemitério
E conto os barcos que
passam
Desenho na mão os barcos
que passam
E os barcos que choram
E de todos eles…
Sinto a falta do meu pequeno
barco a motor
Que colocava numa pequena
poça… junto ao mar
E passava as tardes em
círculos
Toda a tarde
Em círculos
Termino o cigarro
Ainda respiro
Graças a Deus
Levanto-me da cadeira
onde me sentava
Em frente ao cemitério…
E começo a escrever no
sorriso da noite
Enquanto a noite ainda me
sorri
Enquanto a noite…
É noite
Depois…
Depois sei que a noite se
vai travestir de puta
Que a noite vai correr
pelas ruas de Lisboa
Que a noite se vende por
um cigarro…
E que o magala de ontem
É o magala de hoje
Que o magala de ontem
Fode o magala de hoje
E que todos os barcos de
ontem
São a sucata de hoje
Que os miúdos de ontem
Hoje
Alguns
São assassinos
Bêbados e drogados
Putas e travestis…
Bebo o cálice de cicuta
Peço ao diabo que coloque
mais lenha na fogueira
Escrevo a última carta
Puxo de um cigarro
E finalmente oiço a voz
do silêncio
Pego na espada que
transporto junto ao peito
Olho-a
Ela olha-me
E dou-me conta…
Que o triciclo com que eu
brincava
Hoje é um monstro
De madeira
Tem olhos azuis
E come todos os magalas
que brincaram junto ao Tejo.
Alijó, 27/03/2023
Francisco