domingo, 2 de abril de 2023

Flor sem mim

 Desenhei no teu olhar

Uma flor sem idade,

Uma flor com medo de amar…

De amar… amar a saudade.

 

Desenhei nos teus lábios de amendoeira

A cidade antes de acordar,

Uma cidade que dorme na fogueira…

Na fogueira do mar.

 

Desenhei em ti uma lágrima de chorar,

Enquanto a manhã se despede de mim…

Uma flor sem rosto, uma flor cansada de amar…

 

Amar as manhãs em poesia,

Desenhei no teu olhar o meu jardim

E o silêncio do dia.

 

 

 

Alijó, 2/04/2023

Francisco

sexta-feira, 31 de março de 2023

Oração

 Peço a Deus-todo-poderoso

Criador da vagina

E do pénis

Deus dos mares e das terras não cultivadas

Deus da enxada

E do prazer

Deus que inventou o homem

E a mulher

E o homem da mulher

Quando a mulher da mulher

Depois do filho dele

Sentado à esquerda de:

Bem-vindo a casa.

 

Deus misericordioso

Dos Ricos

Dos pobrezinhos

Dos ranhosos

E das ranhosinhas…

Deus

Entre todos os Deuses

E entre todas as equações

E dentro de todas as camas

Em todos os lençóis

Deus do tesão

Da infertilidade

Deus dos asteróides

E dos espermatozóides

 

Peço a Deus-todo-poderoso

Criador da vagina

E do pénis

Servomotor da paixão

Piloto-automático do desejo

Entre duas pinceladas de silêncio

E um grama de tesão,

 

Deus ao cubo

À vigésima quinta potência

Quando a raiz quadrada do medo

Em função do mestre faroleiro

O gajo deita farpas na fogueira

E o desejo abre a janela do paraíso

E Deus

Também o obreiro e criador e mister e pai do filho acabado de nascer

Ranhoso

Ranhosa

Flor em papel

Lápis da madrugada

Quando o Deus

Criador

Designer de todo o Universo…

Morre…

À espera de uma consulta médica:

O louco toma a drageia e esconde a cabeça na almofada.

 

 

 

 

Alijó, 31/03/2023

Francisco

quinta-feira, 30 de março de 2023

O cãopoetacolhãdochãonochão

 CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que se alicerça em ti

Que te come

Que se delicia com a tua língua

Aquele que escreve nos teus braços

Nas tuas nádegas

Aquele que finge ser a tua sombra

Que lê os teus livros

Que come a palha do teu colchão

Aquele que voa

Aquele que tomba no chão

Aquele que mija

Que porcamente cospe no chão.

 

Aquele filho da puta

Que te ameaça com palavras

Que em vez de te atirar com pedras…

Atira-te com a tabuleta que brinca no portão

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que finge ser o teu fiel cão

Que deixou de ser cão

(DIZEM: dizem que agora é um estorninho com asas de nylon)

Aquele que cospe

Que mija

No chão.

 

Aquele que quer ser como tu

Um (tu) diferente

Que em vez de ser CÃO

É… Cãozão

É boi de primeira

Alface de lábios pincelados de vergonha

Aquele que morre

Aquele que inventa o cão

Na voz de cão

O cão que escreve

O cão que fala

Que ladra

Ladra

Ladra

Cão. Cabrão. Colhão. Chão.

 

Toca o telefone

É do trezentos e quatro

Terceiro direito

Uma janela virada para o sol

Outra janela virada para a morgue

Um cão.

Cão.

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que se alicerça em ti

Que te come

E enquanto o poeta não MORDE

E em cada filho da puta

Daquele que morde

Deixa de morder…

E

 

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

 

 

 

Alijó, 30/03/2023

Francisco

O último cigarro de prata

 Peço ao meu último cigarro

(banhado a prata e com as insígnias: L&F)

Peço ao meu último cigarro,

Travestido de bala,

Que antes de perfurar o meu esqueleto de sono,

Faça com que a madrugada se pincele de noite,

Escura,

Fria,

Cinzenta,

E muito fria

E muito cinzenta e muito escura...

E muito fria.

 

Peço ao meu último cigarro

(após Deus ter desertado da Armada)

Que me traga os fósforos,

As palavras das cinzas dos livros entre névoas de medo

E outras tantas palavras,

Palavras de merda,

Palavras de Deus,

Homem integro,

Homem da farra…

Palavras

Na palavra.

 

Se nascer menino…

Será trapezista,

Se nascer menina…

Será Deusa das palavras & Afins da madrugada, Limitada…

Com sede na Rua do Alegrim,

Trezentos e quatro…

Mil e quinhentos – trezentos e dois…

Lisboa.

 

 

 

 

Alijó, 30/03/2023

Francisco

quarta-feira, 29 de março de 2023

Livro

 Em cada livro

Há um sorriso escondido,

Em cada livro,

Habita um beijo prometido,

Em cada livro, que leio, que escrevo…

Há uma manhã que não se cansa de acordar,

Uma noite em brincadeira,

Uma noite em luar,

Em cada livro,

Um poema,

Um texto para amar…

 

 

 

Bragança, 29/03/2023

Francisco

terça-feira, 28 de março de 2023

O fogo

 Ardem nesta fogueira sem nome,

Os sonhos,

Ardem nesta fogueira imunda,

Todas as palavras

E todos os luares,

 

Ardem nesta fogueira que transporto no peito

Todos os silêncios

E todas as madrugadas,

 

Ardem,

Dentro de mim,

Todos os rios

E todos os mares…

E todos os barcos,

 

Ardem

Todas as flores da Primavera,

Todos os horários desmedidos…

Ardem as canções

E os poemas…

E ardem as manhãs ensonadas…

E os poemas sofridos.

 

 

 

Alijó, 28/03/2023

Francisco

segunda-feira, 27 de março de 2023

O cálice de cicuta

 Bebo o cálice de cicuta

Peço ao diabo que coloque mais lenha na fogueira

Escrevo a última carta

Puxo de um cigarro

Desenho nos lábios da paixão

A forca

Depois

Recebo a visita do criador

Quer que eu me transforme em árvore

Digo-lhe que não me apetece

Digo-lhe que vá para o caralho…

 

Sento-me à porta do cemitério

E conto os barcos que passam

Desenho na mão os barcos que passam

E os barcos que choram

E de todos eles…

Sinto a falta do meu pequeno barco a motor

Que colocava numa pequena poça… junto ao mar

E passava as tardes em círculos

Toda a tarde

Em círculos

 

Termino o cigarro

Ainda respiro

Graças a Deus

Levanto-me da cadeira onde me sentava

Em frente ao cemitério…

E começo a escrever no sorriso da noite

Enquanto a noite ainda me sorri

Enquanto a noite…

É noite

 

Depois…

Depois sei que a noite se vai travestir de puta

Que a noite vai correr pelas ruas de Lisboa

Que a noite se vende por um cigarro…

E que o magala de ontem

É o magala de hoje

Que o magala de ontem

Fode o magala de hoje

E que todos os barcos de ontem

São a sucata de hoje

Que os miúdos de ontem

Hoje

Alguns

São assassinos

Bêbados e drogados

Putas e travestis…

 

Bebo o cálice de cicuta

Peço ao diabo que coloque mais lenha na fogueira

Escrevo a última carta

Puxo de um cigarro

E finalmente oiço a voz do silêncio

Pego na espada que transporto junto ao peito

Olho-a

Ela olha-me

E dou-me conta…

Que o triciclo com que eu brincava

Hoje é um monstro

De madeira

Tem olhos azuis

E come todos os magalas que brincaram junto ao Tejo.

 

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco