terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O castelo das noites fumadas

 De todas as minhas telas

Nenhuma tem nome

Para quê dar o nome a uma tela

Se ela é prisoneira de uma parede

(nunca irá sair da parede)

E mesmo as que tenho amontoadas

Encostadas à parede

Não possuem nome

(vou levá-las a passear ao parque infantil?),

 

Menina Primavera

Não corra com pressa

Pode cair,

 

Ou

 

Menino orvalho

Se faz favor

Coma a sopa toda,

 

Ou

 

Sabe, infinito?

Sim, pai…

E o infinito nada sabe,

 

Portanto

Todas as minhas telas não têm nome,

 

Eu

O artista

Que desenha

Que pinta

Que dou vida a todas estas telas

Também como elas

Não queria ter nome,

 

Poderiam ter-me apelidado

De zero três um seis seis nove oito sete (03166987)

RH mais

Nascido a dezoito de Maio de mil novecentos e oitenta e sete
E falecido a nove de Agosto de mil novecentos e oitenta e oito

Residente no primeiro esquerdo

Porque no primeiro direito vivia a velhinha

Que tinha dois cães

Três gatos

E a neta era trapezista

(par-time)

Num circo que costumava estar estacionado junto ao Castelo,

 

E o zero três um seis seis nove oito sete

Numa linda noite junto ao Tejo

Estávamos em Julho

Enquanto a neta da velhinha passeava um dos felinos

(penso que seria o Alfredo)

Sentou-se à minha beira

(Primeiro pedindo sua licença)

E pediu-me que lhe escrevesse um poema…

 

E disse-lhe

Olhe menina

Poemas não escrevo

Poemas leio-os

E quando estou empanturrado

(gosto de escrever cartas à lua)

(e quanto a poemas costumo beber os de AL Berto e fumar os poemas de Cesariny),

 

Ela sorriu

Disse que eu era louco

(pois quem é que escreve cartas à lua?)

 

E continuando a ser o zero três um seis seis nove oito sete

(até nove de Agosto de mil novecentos e oitenta e oito)

Comecei a vender os dias

Vendia-os na rua

Na feira da ladra

Por aí

Por aqui

Até que quando me dei conta

Já não tinha os dias

E quanto às noites

(já estava empenhados em algumas horas)

Quanto às noites foi um autêntico desastre

Hoje diria um desastre ecológico,

 

Sabe, infinito?

Sim, pai…

E o infinito nada sabe,

 

Porque o infinito nunca quis saber de mim…

E eu

Diga-se

Também não

(só penso nele quando fumo os poemas de Cesariny e bebo os poemas de AL Berto).

 

 

 

 

 

 

Alijó, 3/01/2023

Francisco Luís Fontinha

(zero três um seis seis nove oito sete)

As lágrimas do mar

 Da minha janela

Oiço as lágrimas do mar

E o sorriso dos pássaros,

 

Daquela árvore ensonada

Que poisou durante a noite

Junto à minha janela

Vêm a mim a insónia

E a insónia traz na algibeira o cofre dos sonhos

E não entendo porque a insónia me quer dar sonhos

Se de sonhos estou eu farto

E cansado

Cansado dos sonhos

Cansado do mar

E cansado do dia

Cansado dos pássaros,

 

Da minha janela

Já não vejo os barcos que me entretinham

Nem oiço o vento que levava as minhas palavras

E as semeava junto à lápide dos sonhos,

 

Porque os sonhos morreram

Como morreram as minhas árvores

Morreram as minhas fotografias

Morreram os meus barcos,

 

Da minha janela

Oiço as lágrimas do mar

E o sorriso dos pássaros,

 

Mas este mar

O mar que vejo da minha janela

Está tão triste

Tão feio…

Tão

Tão sem ninguém

Deixou de ter peixes

Deixou de ter barcos

Deixou de ter sonhos…

E nem uma alma se suicida neste mar,

 

Ao menos

Aos menos alguém

Uma alma

Uma alma generosa que se suicide neste mar

Como se suicidavam as almas antigamente

Neste mar,

 

Deram-me um nome

Fui o resultado da resolução da equação do desejo

(dizem que fui muito desejado, talvez numa noite, dia, manhã, madrugada, de Março)

E fui o espermatozóide mais rápido

O mais inteligente

Mais…

O mais capaz de entre os milhões de espermatozóides do meu pai

E quando abracei o óvulo da minha mãe foi-me dada uma medalha

Fiquei em primeiro lugar na corrida

Como numa tarde qualquer

Numa corrida de cem metros no Pinhão (era eu puto),

 

Registaram-me no registo civil

Apelidaram de Francisco

Nome do meu avô paterno

Se tivessem escolhido o nome do meu avô materno

Hoje chamava-me de Domingos

(e aos Domingos estamos encerrados, descanso de pessoal)

E eu detestava chamar-me de Domingos

(desculpa avô, desculpa pai, desculpa mãe),

 

Da minha janela

Oiço as lágrimas do mar

E o sorriso dos pássaros,

E ao longe

Os esqueletos da Calçada da Ajuda

Que de ajuda nada tinha

Em marcha acelerada num rectângulo de sono

A que chamaram de parada;

A parada das lágrimas do mar.

 

 

 

 

Alijó, 03/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Mil pedaços

 

Acordo

E sou mil pedaços

Pedaços do meu corpo

Que a tesoura da insónia

Durante a noite

Recortou em silêncio…

 

 

Alijó, 03/01/2023

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

A vida

 Todas as paredes

As paredes de uma sala

São tristes

São feias

São sós,

 

Juntamente com as paredes de uma sala

Habitam outras paredes

Com cor

Sem cor

Mas todas elas

Tal como as paredes de uma sala

São tristes

São feias

E são sós,

 

Depois suspendem na parede de uma sala

Que é triste

Parede de uma sala que está só

E é extremamente feia

Um quadro

Um quadro sem nome

Um pedaço de tela

Aprisionado entre quatro ripas em madeira

Um caixão?

Não

Um caixilho

O caixão serve para transportar corpos

Ossos

Chagas invisíveis

O caixilho aprisiona um pedaço de tela

Um pedaço de tela sem nome

Feio

Muito feio

E triste

Muito triste,

 

E de que serve dar um nome a um pedaço de tela

Aprisionado dentro de quatro ripas?

Caixilho?

Sim

O caixilho

E qualquer que seja o nome do quadro

Que está suspenso na parede da sala

Parede da sala que é feia

Que é fria

E triste

Será sempre um pedaço de tela

Dentro de quatro ripas

Também tristes

Também sós,

 

A casa que tem paredes frias

E tristes

E sós

Que nas paredes da sala

Frias

E tristes

E sós

Têm no peito um pedaço de tela

Também ela triste

Também ela só

Também ela fria

E uma janela

E triste

E fria,

 

Em frente à janela

Uma árvore

Triste

Uma árvore fria

Durante o dia

Poisam sobre a árvore

Pássaros tristes

Frios

E sós

Durante a noite

Sem que ninguém consiga ver

Poisa a lua

E as estrelas,

 

A casa triste

Feia

E só

Tem lágrimas

Tristes

Feias

E sós

E tal como o pedaço de tela

Aprisionado dentro de quatro ripas

Não tem nome

Nem fome

Mas tem lágrimas

Tem um pedaço de tela

Tela muito fria

Muito triste

E só,

 

E quando a luz se extingue na mão das estrelas

Este pedaço de tela

Aprisionado dentro de quatro ripas

Tristes

E sós

Também se extingue

E este pedaço de tela

Não fala

Não come

Não bebe

Ou fuma

E este pedaço de tela é apenas um pedaço de tela

Sem nome

Triste

Muito triste

E muito só,

 

E este caixão

(perdão, este caixilho)

É o único abraço que este pedaço de tela

Muito só

Muito fria

E triste

Tem,

 

Quem mias de que um triste e só caixilho

Para abraçar um pedaço de tela

Tela muito fria

Tela muito feia

Tela muto triste…

 

E tal como o caixilho que abraça uma tela

Uma tela fria

E triste

Uma tela só

Apenas uma mãe

Abraça o seu filho

Seu filho muito triste

Seu filho só

Muito só

E às vezes

Uma mãe

Pega em todos os pedacinhos do seu filho

Aqueles pedacinhos que jazem no pavimento da loucura

Coloca-os sobre a mesinha-de-cabeceira

E aos poucos

Aos poucos devolve-o à vida,

 

Não sou um pedacinho de tela

Deram-me um nome

Não tenho um caixilho que me abrace

Mas tive uma mãe

Mãe que pegou em todos os meus pedacinhos

Os colocou sobre a mesinha-de-cabeceira

E devolveu-me à vida

Tal como o fez pela primeira vez.

 

 

 

 

 

Alijó, 02/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Mar de mim

 

Não sei que mar é este

Que todas as noites me procura

E me quer levar,

 

Que o meu corpo já lhe pertence

Não é novidade para mim

Um poeta sem nome

Um poeta sem jardim,

 

Mas este mar

Não se contenta apenas com o meu corpo esquelético

Quer também a minha alma,

 

E eu não tenho alma

Nunca tive alma,

 

O que quer este mar?

 

Este mar de mim…

 

 

Alijó, 02/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Poema luar

 

Desta maré sem nome

Um pedacinho de mel voa nas palavras

E da mão do poeta

A mão que inquieta as madrugadas

Nasce o poema luar,

 

E este pedacinho de mel

De lágrimas nos lábios

Rouba as palavras ao poeta…

O poeta que com a mão inquieta as madrugadas,

 

As madrugadas de um pedacinho de mel.

 

 

 

Alijó, 02/01/2023

Francisco Luís Fontinha

domingo, 1 de janeiro de 2023

O mendigo

 Ninguém cobre o mendigo

Nem a noite o protege

Das estrelas,

 

O pão que ele transporta na algibeira

São os meus cigarros

Porque de pão não vivo

Tão pouco vivo de pequenos luares

Que se estendem sobre o mar,

 

E do pão

Nasce o dia

O dia do mendigo que de pouco lhe serve

Quer lá saber o mendigo do dia

Ou o dia do mendigo,

 

E podíamos ser todos felizes

O mendigo feliz com a noite

O dia feliz com as lágrimas do mendigo

O luar muito mais feliz de que ambos

E o poema está feliz com o poeta,

 

Poeta que ainda não é mendigo

Poeta que é o coveiro das palavras

As boas

E as fumadas

Porque o poeta fuma palavras

E o mendigo fuma os cigarros do poeta

O poeta que descobre a noite

E quando se senta junto ao rio

Deixa-se ficar por ali…

Depois aparece o mendigo

Aprece a noite

E o cobertor

O cobertor que serve para o poeta cobrir o mendigo,

 

E quando batem à porta do meu postigo

Uma trave de sono cai

Cai sobre a cabeça do mendigo

O mendigo que fuma o pão

E bebe as palavras já fumadas pelo poeta,

 

E um beijo se despede da alvorada

Enquanto o mendigo e o poeta

Fumam todas as estrelas da noite;

E a noite sem estrelas

É como o dia sem palavras

Quando o fantasma da solidão

Abraça o mendigo

E acorrenta o poeta à melancolia do silêncio,

 

Porém

Ainda não o sei

Deixei de ver o mendigo

Deixei de ver o cobertor que servia para eu cobrir o mendigo…

E agora

O mendigo descoberto

Morre

Como morrem os poemas no leito em desejo.

 

 

 

 

Alijó, 01/01/2023

Francisco Luís Fontinha