Numa qualquer tarde em Luanda, algures no bairro Madame Berman, sem precisar a data correcta, pois o narrador nunca o saberá, mas consta que foi ente 1966 e 1971, enquanto o senhor Fernando verificava quando tinha de renovar a carta de condução, o pequeno dos calções, aproximou-se dele e numa voz poética,
- “quero escrevelhe”,
O senhor Fernando num gesto
afectuoso, deu-lhe uma folha e um lápis, para que o puto dos calções pudesse
então escrever,
Mas parece que o puto
queria escrever na carta de condução do pai e não na pequena folha,
Pacientemente, o senhor
Fernando dizia-lhe que na carta de condução não,
O puto berrava,
E consta que foi a única
vez em que o senhor Fernando lhe deu umas valentes nalgadas no rabiosque gorducho
(diga-se que se tivesse levado mais não se perderia nada) até que a mãe do
menino, a dona Arminda, o foi buscar e pegando-o ao colo com todo o carinho,
retirou-o da sala, mas o puto não se calava, e quase todo roxinho, continuava
- “escrevelhe”, “escrevelhe”
escrevelhe” escrevelhe” escrevelhe”…
Consta que o puto já se
deliciava em rabiscar as paredes dos compartimentos nuns rabiscos
pré-históricos, e desde esse episódio começou a rabiscar letras que às vezes se
pareciam mais com o abstracto de que com palavras,
- “escrevelhe” escrevelhe”
escrevelhe” escrevelhe”…
O puto foi crescendo, e
já na adolescência começou a escrever compulsivamente e a desenhar
compulsivamente, até que num acto de loucura, numa noite de loucura, queimou
todos os papeis que tinha escrito e todos os desenhos; ele lá saberá a razão.
Hoje é fiel depositário
de três caixotes onde habitam cerca de três mil poemas e textos; a maioria
escritos à máquina, oferecida pelos pais quando fez quinze anos e comprada na
loja do senhor Antoninho Torcato, a prestações.
Provavelmente terá sido
nesta tarde que nasceu o poeta Francisco Luís Fontinha.
Só ele o saberá.
Alijó, 28/12/2022
Francisco Luís Fontinha