quarta-feira, 27 de março de 2013

(enlouqueces-me?)

foto: A&M ART and Photos

Escrevo-te, sabendo que não tenho papel, caneta, nem a vontade de o fazer, mas dentro de mim, escrevo-te, desenho letras na sombra do meu cabelo projectada numa mesa deserta, só, como a cadeira onde me sento e imagino-te no meu colo, e imagino-te com a cabeça deitada sobre o meu peito ofegante, como a ribeira a descer a montanha, entre pedras, arbustos e espantalhos de palha, entre pássaros e vontades de voar, sinto-te dentro do meu corpo como um ácido que me queime e aquece e faz mergulhar na penumbra dos teus olhos, tu
Enlouqueces-me,
Cresces como uma alga dentro do meu púbis, pintas-te de preto quando a noite entra pela janela e poisa sobre a secretária onde poiso os meus cotovelos, onde dormem as aranhas e os desejos, onde guardo religiosamente o líquido derramado dos meus seios de xisto, como o rio para onde se dirige a ribeira, como tu, ou como eles, que dizem-se viver não vivendo dentro da espuma do mar,
Não vens, hoje?
(enlouqueces-me?)
Há uma porta blindada com acesso para o telhado, o telhado é assente sobre barrotes de madeira apodrecida, diria mesmo, do Século XIX, e mesmo assim adorava esconder-me no local mais distante do prédio, no local mais quente, quando era verão, e o mais frio, quando era inverno, e mesmo assim passava lá eternidades misturadas em horas, que tempos depois transformavam-se em tardes, e depois, em dias
Não vens, hoje?
E tempos depois em semanas, e meses, e anos, e por lá fiquei até apodrecer juntamente com a velhice da madeira, quase morta, abria o postigo, e ao longe ouvia o silêncio das árvores, o bater de ramos dos pássaros negros, que ao cair a noite se perdiam nela, e tu
Eu, eu esperava-te, eu sentada numa cadeira de madeira com os braços e cotovelos assentes sobre uma velha mesa de madeira, assente sobre um soalho rabugento e quase sempre constipado, e tenho a certeza que há
(dias, dias e noites travestidos de barrotes de madeira apodrecida, escondia-se lá, até que chegava o mar e o levava para longe, e ouvia-se o ressonar das folhas das árvores de cartolina, e ouviam-se os sorrisos dos pássaros negros, em frente ao espelho do guarda-fato, fato e gravata, sapatos pontiagudos, lenços de papel), e ouviam-se-lhes
A certeza que há tristeza nos teus olhos de diamante adormecido, a porta blindada, e do outro lado de lá, eu cá, sinto-o, imagino-te sentada numa simples cadeira de madeira, descalça, tens os cotovelos suspensos sobre a planície da madeira envelhecida, e disseram-me que é lá que guardas as pulseiras de vidro, onde dormem as aranhas e os desejos, onde guardas religiosamente o líquido derramado dos teus seios de xisto, como o rio para onde se dirige a ribeira, como eu, ou como vós, que dizem-se viver não vivendo dentro da espuma do mar,
Não vens, hoje?
E ouviam-se-lhes os gemidos dos pés sobre o soalho húmido que as palavras trouxeram das docas embriagadas com os cigarros embalsamados e que ainda hoje vivem no mausoléu da ignorância, tínhamos
Tínhamos o que, meu querido?
(enlouqueces-me?)
Não vens, hoje?
(tenho medo de me apaixonar por ti)
Claro que vou, é só sair do sótão, descer as escadas, e logo, logo, e logo estarei sentado no teu colo...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Hoje é dia de festa

foto: A&M ART and Photos

Esta varanda que me alicerça o corpo às marés vazias, este ar e esta sensação de silêncio, que aprisiona os meus braços ao vento filho da rua das traseiras, este medo, esta manhã distante das estrelas complexas do nocturno céu da tua boca, uma janela, e
O espelho de ontem procurando a saliva de hoje,
Esta varanda que me aperta o coração, sabendo eu, que há muito deixei de ter coração, cabeça, prazeres, solidões de tempestades ao romper a madrugada num cenário de papel, os actores sentados na plateia, os artistas de circo que a infância semeou no capim junto aos Coqueiros, não sei, mas acredito que um dia vão voltar, também eles, sentados na plateia, ao jantar, os pratos vazios misturam-se com o público em círculos no palco, e começa o espectáculo
A vida de uma mulher de veludo, encenação de mim, e direcção de actores, também de mim, a tenda levita de quando em quando, saltita como seios roxos com pintinhas brancas e flores amarelas, e dizem que o mar entra pela porta da varanda, ela submissa na chávena de café olhando pensativamente a rua em ruínas como gaivotas órfãs pedindo esmola no cais das camélias abandonadas,
(solidões de tempestades ao romper a madrugada num cenário de papel, os actores sentados na plateia, os artistas de circo que a infância semeou no capim junto aos Coqueiros, não sei, mas acredito que um dia vão voltar, também eles, sentados na plateia, ao jantar, os pratos vazios misturam-se com o público em círculos no palco, e começa o espectáculo)
E começa
O
Circo,
E começa
O
Teatro,
E começa o espectáculo dos pratos vazios sobre uma mesa de vidro, ela, a mulher de veludo, refugia-se na varanda da vergonha, bebe café e aquece as mãos com o medo da fome, inventam-lhe alcunhas, e obriga-se a submergir-se nos oceanos dos pilares de madeira depois de o vento abandonar as crianças e os idosos..., na esplanada dos olivais encalhados na serra do desassossego, há um rio doente, rio que sobe as escadas, e leva a mulher de veludo, e leva o corpo de uma mulher fingindo alegria
Viva a alegria, Alegria, Alegria, Hoje é dia de festa,
Meninos e meninas,
Senhoras e senhores,
Respeitável público..., A senhora de Veludo!
E os cortinados mergulhavam na solidão, e havia a tristeza disfarçada de fome, quando os pratos vazios, e os talheres, e os guardanapos..., voavam entre paredes da cozinha,
O espelho de ontem procurando a saliva de hoje,
Na varanda,
E não regresses, eu a ouvi-los, os pássaros nas plataformas sobre as ruas em obras, telefona-me tá, e claro que não tá, nunca esteve, nunca estará, vestida, forte, de pé como uma estátua de bronze, pensava eu, na varanda, nua, uma janela em gemidos quando alguém tentava encerrá-la..., e claro, quem, digam-me, quem gosta de ser encerrado? Digam-me, quem gosta de ser aprisionado? Ninguém, ninguém, ninguém havia quando a terra começou a tremer, ela aos poucos, como pedaços de papel, desmoronou-se, de
Pedaço em pedaço,
De
Letra em letra,
Até chegar a palavra, chega, basta...
Fim.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Corpo Moliceiro

A&M ART and Photos

A loucura das rochas frias e escuras
entranhadas no meu corpo moliceiro
procura a chuva que acompanha o vento
e navega sobre os telhados da aldeia,

Esta frieza grande corrida da paixão
este cansaço
esta tristeza
que a noite deixa cair sobre o meu cabelo sonolento,

Fingir que amo as ervas orvalhadas dos oceanos invisíveis
caminhar sonhando voar sobre as nuvens de vidro
e que nada tenho
percebendo que os abraços morreram entrelaçados no meu pescoço,

A loucura das rochas escura e frias e solitárias
onde me sento e adormeço e finjo viver
não voando não amando os versos do mar
não tendo as palavras a culpabilidade de existirem na minha mão.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 26 de março de 2013

A banheira insónia da paixão

A&M ART and Photos

Imaginava-te uma sombra de luz rodeada por leões e cavalos e abelhas, imaginava-te selvagem como as acácias do madrugar vento da cidade pintada de amarelo, imaginava-te hirta, morta, abandonada, numa tela de prata com fios invisíveis de chocolate e café depois do jantar, imaginava-te sentada numa pedra com cinco esquinas, três andares, e uma cave
Uma casa de banho e uma banheira, uma janela para o quintal da vizinha, velha e rabugenta, imaginava-te sentada na banheira a confidenciar segredos às pétalas de água em gotas minúsculas, e lá fora habitavam as grandes nuvens de tédio, brincavas com a espessura do sonho, e fechavas a mão no meu peito de xisto,
Imaginava-te no espelho da cave abraçada ao piaçaba, e teias de aranha, e o soalho em decomposição, imaginava-te o putrefacto esqueleto das flores apaixonadas pelos olhos do leão, e com sorrisos construídos em mentiras e finais de tarde imaginários, brincavas com o cavalo e com as abelhas, como o fazias em criança, e como o fazíamos enquanto amantes por correspondência, um curso suspenso no tecto da noite corpuscular, uma menina de celofane embrulhada em relógios a pilhas, e tudo quando depositávamos os pertences mais secretos num armário incorrecto, em pedaços de lixo, sem porta, como as lareiras de trás-os-montes
O frio silêncio em meus braços,
Imaginavas-me sentada na banheira, olhava a torneira e sentia o vazio da água a correr, imaginava-te como um rio, entre pedras e curvas, até que ao longe, da janela, sabia que encontravas sempre, que encontravas o mar, mas hoje, hoje percebo que perdeste-te nas imagens brancas de uma cidade inexistente, uma cidade sem casas, uma cidade com fome, sem amor, e eu, parva, imaginava-te a subires os quase cinquenta degraus, ouvia-te o pulsar do coração, ouvia-te a voz pregada ao corrimão e quando batiam à porta
Ele está?
Mentia-lhes e dizia-lhes que deixei de ver-te como quem abandona um álbum de fotografia, com histórias, com corações e nas traseiras dela inscrito “EU + TU”, mentia-lhes e dizia-lhes que a última vez que estive contigo foi nos rochedos junto ao cais dos homens apaixonados, onde sempre que vem a trovoada de incenso, uma boca procura docemente os inocentes poemas da menina que passa as horas sentada na banheira a brincar com a água, a imaginar
A praia, o mar em decomposição, as janelas do ciúme às portas da ruína, os automóveis procurando alimentarem-se de saliva, beijos e outros pequenos organismos, sempre, vivos,
A imaginar do longínquo campo de trigo, um corpo, nu, deitado entre a terra e as pedras ao redor da eira, o canastro dorme com as espigas de milhos colhidas no ano anterior, às vezes, desaparecia e escondia-me lá dentro, deitava-me em cima do milho e imaginava-te
Nos teus braços, lábios,
Imaginava-te sobre mim como as pequenas sombras de luz que as fendas das ripas construíam nas doiradas espigas, pedia que começasse a chover, e o sol fazia de mim um boneco cansado, um boneco de palha seca, e um chapéu com três ou quatro buracos, estava de pé e encontrava verticalmente com a ajuda de um cabo da piaçaba,
Na cave, entre teias de aranha, imaginava-te mergulhada no círculo trigonométrico e traçava ângulos no teu peito, calculava a tangente três meios de pi, e entre os teus seios, sabia que dois triângulos rectângulos brincavam como duas mãos de milho, seco, dentro do espigueiro, com ranhuras de luz,
Nos teus braços, lábios, a carlinga pesadíssima poisada nas pedras abandonadas das tardes encobertas, pedíamos sol, e tínhamos chuva, pedíamos beijos, e infelizmente, nunca tínhamos beijos, nem água, nem a banheira para ela brincar, imaginava-lhe uma banheira e imaginava-a sentada à beirinha como se estivesse dentro de um barco a remos a olhar distraidamente os finos papeis de esperança onde escrevíamos recordações com marisco, bebíamos cerveja e sonhávamos com papagaios de papel sobre o Céu, logo pela manhã, mesmo antes de acordarmos,
E acordávamos ressacados, dávamos conta que não tínhamos banheira, o pequeno barco a remos encontrava-se estacionado junto ao contentor do lixo e a janela da casa de banho, onde eu a imaginava sentada esperando pelo meu regresso, nunca
Existiu,
(tínhamos medo da solidão, comprávamos cigarros avulso e líamos os jornais da semana anterior, tínhamos alguns livros que íamos vender para comermos, e um dos teus cachimbos queria fugir, tentou cortar os pulsos com um isqueiro, não o conseguiu, não teve coragem para o fazer, e, mentia-lhes e dizia-lhes que deixei de ver-te como quem abandona um álbum de fotografia, com histórias, com corações e nas traseiras dela inscrito “EU + TU”, mentia-lhes e dizia-lhes que a última vez que estive contigo foi nos rochedos junto ao cais dos homens apaixonados, onde sempre que vem a trovoada de incenso, uma boca procura docemente os inocentes poemas da menina que passa as horas sentada na banheira a brincar com a água, a imaginar)
E imaginava-a, sem roupa, dentro da banheira com espuma de Primavera.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha