foto: A&M ART and Photos
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Escrevo-te, sabendo que não tenho papel, caneta,
nem a vontade de o fazer, mas dentro de mim, escrevo-te, desenho
letras na sombra do meu cabelo projectada numa mesa deserta, só,
como a cadeira onde me sento e imagino-te no meu colo, e imagino-te
com a cabeça deitada sobre o meu peito ofegante, como a ribeira a
descer a montanha, entre pedras, arbustos e espantalhos de palha,
entre pássaros e vontades de voar, sinto-te dentro do meu corpo como
um ácido que me queime e aquece e faz mergulhar na penumbra dos teus
olhos, tu
Enlouqueces-me,
Cresces como uma alga dentro do meu púbis,
pintas-te de preto quando a noite entra pela janela e poisa sobre a
secretária onde poiso os meus cotovelos, onde dormem as aranhas e os
desejos, onde guardo religiosamente o líquido derramado dos meus
seios de xisto, como o rio para onde se dirige a ribeira, como tu, ou
como eles, que dizem-se viver não vivendo dentro da espuma do mar,
Não vens, hoje?
Há
(enlouqueces-me?)
Há uma porta blindada com acesso para o telhado, o
telhado é assente sobre barrotes de madeira apodrecida, diria mesmo,
do Século XIX, e mesmo assim adorava esconder-me no local mais
distante do prédio, no local mais quente, quando era verão, e o
mais frio, quando era inverno, e mesmo assim passava lá eternidades
misturadas em horas, que tempos depois transformavam-se em tardes, e
depois, em dias
Não vens, hoje?
E tempos depois em semanas, e meses, e anos, e por
lá fiquei até apodrecer juntamente com a velhice da madeira, quase
morta, abria o postigo, e ao longe ouvia o silêncio das árvores, o
bater de ramos dos pássaros negros, que ao cair a noite se perdiam
nela, e tu
Eu, eu esperava-te, eu sentada numa cadeira de
madeira com os braços e cotovelos assentes sobre uma velha mesa de
madeira, assente sobre um soalho rabugento e quase sempre constipado,
e tenho a certeza que há
(dias, dias e noites travestidos de barrotes de
madeira apodrecida, escondia-se lá, até que chegava o mar e o
levava para longe, e ouvia-se o ressonar das folhas das árvores de
cartolina, e ouviam-se os sorrisos dos pássaros negros, em frente ao
espelho do guarda-fato, fato e gravata, sapatos pontiagudos, lenços
de papel), e ouviam-se-lhes
A certeza que há tristeza nos teus olhos de
diamante adormecido, a porta blindada, e do outro lado de lá, eu cá,
sinto-o, imagino-te sentada numa simples cadeira de madeira,
descalça, tens os cotovelos suspensos sobre a planície da madeira
envelhecida, e disseram-me que é lá que guardas as pulseiras de
vidro, onde dormem as aranhas e os desejos, onde guardas
religiosamente o líquido derramado dos teus seios de xisto, como o
rio para onde se dirige a ribeira, como eu, ou como vós, que
dizem-se viver não vivendo dentro da espuma do mar,
Não vens, hoje?
E ouviam-se-lhes os gemidos dos pés sobre o soalho
húmido que as palavras trouxeram das docas embriagadas com os
cigarros embalsamados e que ainda hoje vivem no mausoléu da
ignorância, tínhamos
Tínhamos o que, meu querido?
Há
(enlouqueces-me?)
Não vens, hoje?
(tenho medo de me apaixonar por ti)
Claro que vou, é só sair do sótão, descer as
escadas, e logo, logo, e logo estarei sentado no teu colo...
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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