A&M ART and Photos
|
Imaginava-te uma sombra de luz rodeada por leões e
cavalos e abelhas, imaginava-te selvagem como as acácias do madrugar
vento da cidade pintada de amarelo, imaginava-te hirta, morta,
abandonada, numa tela de prata com fios invisíveis de chocolate e
café depois do jantar, imaginava-te sentada numa pedra com cinco
esquinas, três andares, e uma cave
Uma casa de banho e uma banheira, uma janela para o
quintal da vizinha, velha e rabugenta, imaginava-te sentada na
banheira a confidenciar segredos às pétalas de água em gotas
minúsculas, e lá fora habitavam as grandes nuvens de tédio,
brincavas com a espessura do sonho, e fechavas a mão no meu peito de
xisto,
Imaginava-te no espelho da cave abraçada ao
piaçaba, e teias de aranha, e o soalho em decomposição,
imaginava-te o putrefacto esqueleto das flores apaixonadas pelos
olhos do leão, e com sorrisos construídos em mentiras e finais de
tarde imaginários, brincavas com o cavalo e com as abelhas, como o
fazias em criança, e como o fazíamos enquanto amantes por
correspondência, um curso suspenso no tecto da noite corpuscular,
uma menina de celofane embrulhada em relógios a pilhas, e tudo
quando depositávamos os pertences mais secretos num armário
incorrecto, em pedaços de lixo, sem porta, como as lareiras de
trás-os-montes
O frio silêncio em meus braços,
Imaginavas-me sentada na banheira, olhava a torneira
e sentia o vazio da água a correr, imaginava-te como um rio, entre
pedras e curvas, até que ao longe, da janela, sabia que encontravas
sempre, que encontravas o mar, mas hoje, hoje percebo que perdeste-te
nas imagens brancas de uma cidade inexistente, uma cidade sem casas,
uma cidade com fome, sem amor, e eu, parva, imaginava-te a subires os
quase cinquenta degraus, ouvia-te o pulsar do coração, ouvia-te a
voz pregada ao corrimão e quando batiam à porta
Ele está?
Mentia-lhes e dizia-lhes que deixei de ver-te como
quem abandona um álbum de fotografia, com histórias, com corações
e nas traseiras dela inscrito “EU + TU”, mentia-lhes e dizia-lhes
que a última vez que estive contigo foi nos rochedos junto ao cais
dos homens apaixonados, onde sempre que vem a trovoada de incenso,
uma boca procura docemente os inocentes poemas da menina que passa as
horas sentada na banheira a brincar com a água, a imaginar
A praia, o mar em decomposição, as janelas do
ciúme às portas da ruína, os automóveis procurando alimentarem-se
de saliva, beijos e outros pequenos organismos, sempre, vivos,
A imaginar do longínquo campo de trigo, um corpo,
nu, deitado entre a terra e as pedras ao redor da eira, o canastro
dorme com as espigas de milhos colhidas no ano anterior, às vezes,
desaparecia e escondia-me lá dentro, deitava-me em cima do milho e
imaginava-te
Nos teus braços, lábios,
Imaginava-te sobre mim como as pequenas sombras de
luz que as fendas das ripas construíam nas doiradas espigas, pedia
que começasse a chover, e o sol fazia de mim um boneco cansado, um
boneco de palha seca, e um chapéu com três ou quatro buracos,
estava de pé e encontrava verticalmente com a ajuda de um cabo da
piaçaba,
Na cave, entre teias de aranha, imaginava-te
mergulhada no círculo trigonométrico e traçava ângulos no teu
peito, calculava a tangente três meios de pi, e entre os teus seios,
sabia que dois triângulos rectângulos brincavam como duas mãos de
milho, seco, dentro do espigueiro, com ranhuras de luz,
Nos teus braços, lábios, a carlinga pesadíssima
poisada nas pedras abandonadas das tardes encobertas, pedíamos sol,
e tínhamos chuva, pedíamos beijos, e infelizmente, nunca tínhamos
beijos, nem água, nem a banheira para ela brincar, imaginava-lhe uma
banheira e imaginava-a sentada à beirinha como se estivesse dentro
de um barco a remos a olhar distraidamente os finos papeis de
esperança onde escrevíamos recordações com marisco, bebíamos
cerveja e sonhávamos com papagaios de papel sobre o Céu, logo pela
manhã, mesmo antes de acordarmos,
E acordávamos ressacados, dávamos conta que não
tínhamos banheira, o pequeno barco a remos encontrava-se estacionado
junto ao contentor do lixo e a janela da casa de banho, onde eu a
imaginava sentada esperando pelo meu regresso, nunca
Existiu,
(tínhamos medo da solidão, comprávamos cigarros
avulso e líamos os jornais da semana anterior, tínhamos alguns
livros que íamos vender para comermos, e um dos teus cachimbos
queria fugir, tentou cortar os pulsos com um isqueiro, não o
conseguiu, não teve coragem para o fazer, e, mentia-lhes e
dizia-lhes que deixei de ver-te como quem abandona um álbum de
fotografia, com histórias, com corações e nas traseiras dela
inscrito “EU + TU”, mentia-lhes e dizia-lhes que a última vez
que estive contigo foi nos rochedos junto ao cais dos homens
apaixonados, onde sempre que vem a trovoada de incenso, uma boca
procura docemente os inocentes poemas da menina que passa as horas
sentada na banheira a brincar com a água, a imaginar)
E imaginava-a, sem roupa, dentro da banheira com
espuma de Primavera.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Sem comentários:
Enviar um comentário