terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Outras coisas

Parecias-me tão entretido com as tuas coisas banias que nem me dei ao trabalho de verificar se a janela da sala estava bem fechada, zumbia solenemente o vento que soprava de cima para baixo, em pequenos círculos, como as moedas quando caem de uma altura superior e aterram nas algibeiras erradas, nunca tiveste sorte, queixavas-te todos os dias, em todos os jantares, em todos os serões, e à lareira, dizias-me
Vou-me embora daqui, para sempre, e nunca mais voltarei a este País, eu, confesso, nunca acreditei, como nunca acreditei que conseguisses deixar de fumar, cigarros, heroína, esbelta, finíssima com saia curta e camisa branca, sei que não pensas nela, que já não tem importância para ti, mas confesso, que às vezes,
Medo, o medo, o medo que voltes a apaixonares-te por ela, me troques por uma prata com bolhas castanhas em corridas de carrossel, o taxímetro sempre a rolar como um carro de rolamentos a descer a calçada em direcção ao Tejo, os edifícios de Santa Maria de Belém, tremem, encostam-se às trincheiras submersas nas clareiras da morte, e uma menina com tranças aborda-me
Pai?
Fico quieto, impávido, e pergunto-lhe
Eu?
Que sim, claro, tu, o medo, e penso
Talvez seja uma brincadeira de Carnaval...
Talvez?
Olha para mim e diz-me se tenho cara de brincadeira de Carnaval, e confesso que nunca vi uma menina com rosto de Carnaval, e respondo-lhe que não, não sei, nunca vi um, talvez não tenha, talvez seja verdade, talvez
Pai?
Finíssima com saia curta e camisa branca, cabelos loiros voando sobre a cidade de areia, lilases barcos em madeira prensada rompem as agulhas desgovernadas dos carris de manteiga, oiço-a dentro de mim com as cores da paleta recheada de uma espessa e fina e brilhante atmosfera com cheiro a Barcelona, dormia e acordava em sandes de cartão
Finalmente, eu, o teu pai, o feliz mendigo vestido de rochedos esponjoso e flores de plástico, sempre são mais baratas, dizias-me antes de eu ter partido de casa, de cidade, de vida, de
(Parecias-me tão entretido com as tuas coisas banias que nem me dei ao trabalho de verificar se a janela da sala estava bem fechada, zumbia solenemente o vento que soprava de cima para baixo, em pequenos círculos, como as moedas quando caem de uma altura superior e aterram nas algibeiras erradas, nunca tiveste sorte, queixavas-te todos os dias, em todos os jantares, em todos os serões, e à lareira, dizias-me)
Amanhã não temos lenha para a lareira, respondia-te que tínhamos muitas portas e janelas e mobílias que quase nunca utilizávamos,
Voltavas à carga,
Amanhã não temos nada para comer, respondia-te que enquanto tivéssemos as galinhas da vizinha, para uma canja e um arroz com os miúdos não haveria de faltar, e depois logo se via, ah e ainda podemos aproveitar o restante para um churrasco, como vez, há sempre uma solução para tudo, menos para a miúda de tranças com rosto de Carnaval, Rosto? Não, com cara de Carnaval, e eu imaginava-a pendurada numa árvore a olhar as algibeiras recheadas com as moedas de às vezes
Caem como os tordos depois do jantar,
De às vezes uma silenciosa ânsia melancólica saltitar sobre o muro de xisto que divide o dia da noite, de às vezes esqueceres-te de ligar o interruptor do nosso esquerdo lado, e sempre noite dentro de nós, como as flores que colocavas sobre a minha lápide e eu preenchido com as pratas de alumínio em busca da dama de saia curta e camisa branca, dos cabelos um perfume estranho, vazio, entranhava-se como se entranha, às vezes, as lágrimas miudinhas das tardes de Inverno, à parte disso
Tenho os meus sonhos em consideração e demito-me das funções que me foram confiadas, estou farto desta cidade, desta terra e deste mar, como todos os pássaros, partiremos daqui a poucos dias, pouca coisa entre nós, duas ou três mudas de roupa, o livro de Bernardo Soares, e uma gabardine de senhora
No caso de ela aparecer,
Pai?
Fico quieto, impávido, e pergunto-lhe
Eu?
Que sim, claro, tu, o medo, e penso
Talvez seja uma brincadeira de Carnaval...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Pedra moribunda


Sou de pedra
como os muros que circundam os sorrisos das rosas
deste verdejante cenário jardim
ouvindo os longínquos sons das tristes pálpebras
dos ventos soprados pelas chaminés de vidro
rijos os pedaços de enxada mergulhadas nas palavras cansadas,

A pedra moribunda
à doce saliva dos pequenos repteis enforcados nas lilases telas de linho
porque da noite nua e escura e apetitosa
poucas ou nenhumas coisas sobrevivem às tempestades de areia
que os poemas provocam nos seios das andorinhas
com asas de porcelana,

E as cabeças ocas
delas
poucas ou nenhumas árvores de papel
na despedida das horas assassinadas por um velho relógio de parede
à pedra
o pó das sílabas dentro de um sobretudo negro.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Planeta X-321

Uma fresta da noite copia-se e cola-se no branco papel com pontos de suor, chamavas-me parvalhão, estúpido, ou
Paspalho?
Nunca me interessaram as alcunhas, porque são apenas palavras, e com o vento, elas, voam como voaram as gaivotas do teu curto cabelo nas sombras do Tejo, nos jardins uma fina camada de relvas onde nos deitávamos, e olhávamos o céu nocturno das mãos entrelaçadas, ouvíamos
Paspalho, eu?
Ouvíamos os gemidos das árvores em cio, e dentro de água sentíamos os alicerces dos corações de aço a derreterem, como derretem as nuvens de açúcar na boca de uma criança, como derretiam as nuvens de açúcar na tua boca fingindo Primaveras e rosas de abelha, éramos os únicos habitantes do planeta X-321 e
Parvalhão, estúpido, ou
Paspalho?
E acreditávamos nas cartas perfumadas que enviávamos ao final da tarde nos olhos de uma andorinha, e
Eu?
Três dias depois ela regressava, estava cá, na caixa de chapa zincada com uma portinha mínima, e mal dava para entrarem os dedos, finos, meus, como os varões de aço no estômago de um pilar ou de uma viga, levantávamos-nos cedo, como se as máscaras de Carnaval que na noite anterior tínhamos deixado em cima da mesa-de-cabeceira fossem um espelho que saltara do guarda-fato, e dávamos conta que eram apenas os nossos rostos disfarçados de meninas do mar,
No nosso planeta X-321 não havia nada, água, vento, pássaros ou barcos com asas, apenas dois corpos se misturavam no salitre húmido das madrugadas acabadas de fazer, e ainda quentes, comíamos-as, todas, sem percebermos que elas
Eu?
Que elas eram filhas de um Deus poderoso, teimoso, arrogante, como as paixões entrelaçadas nos céus do planeta X-321, como os pregos do leito da morte das flores embalsamadas, e tínhamos dentro de nós pedaços de vidro, em placas, finas, que serviam para quando viesse a noite, nós, eu, tu, eu e tu, rasparmos o velho mármore dos muros que o sono deixava sobre os versos em arame forjado, tristes, nós, à procura do sossego, e das acácias em flor,
Hoje,
Uma fresta da noite copia-se e cola-se no branco papel com pontos de suor, chamavas-me parvalhão, estúpido, ou
Dois cadáveres dissecados pela caneta de um poeta, inventa-nos quando a solidão o abraça e a insónia lhe bate à porta, quase que me atrevo a afirmar que
Eu e tu, nós,
Somos as lágrimas de fantasia dele, somos os restos de tinta e papel mata-borrão, como duas candeias de poemas suspensos nas janelas do planeta X-321, um espaço vazio, eu e tu, nós,
Que este poeta nos ama, como nos amávamos sentados junto à margem do Tejo a cilindrar cigarros e a diluirmos cerveja e vodka nas nossas bocas cansadas dos tormentos que vagueavam nos pinheiros entre xistos e socalcos, os vidros, em placas, finas, começavam a romperem-nos como o poeta rompia as pequenas folhas de papel e destruía os poemas escritos, e percebíamos que também nós, eu, tu, nós
Dois poemas escritos pelo louco poeta.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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(O menino húmido com pétalas de papel crepe)

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Sapo Angola

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O sótão das histórias sem palavras


As safiras em moedas de olhares
como os crisântemos em rubi que vivem nas árvores da saudade
inventaste-me como inventaste o vento numa tarde de cacimbo
com nuvens de porcelana
e azeitonas em conserva,

Eras conhecida como a raiz de pólen
de abelha em abelha
às flores dispersas pelos pedaços de pólvora seca
que incendiavam as lanternas invisíveis
dos pinheiros abandonados pelas aranhas de vidro,

Percebiam-se-lhes as dissolvidas manhãs de inferno
dentro de um cubo de chapa
zinco
como as pedras polidas pelas mãos da neblina
e desciam o rio as escadas de acesso à lua,

Comiam-se os homens e as mulheres
porque a fome de amar era tanta tanta que o vento se transformava
em jangada
ou madrugada
húmida como os corpos de papel que voavam em volta do silêncio,

E tirando as safiras em moedas de olhares
nada
ninguém
como a vida de um esqueleto apaixonado
pelos ossos da vizinha amiga que vive no sótão das histórias sem palavras...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha