Acordou
a manhã, o sifilítico cansaço da espera regressa após vinte e quatro horas de
ausência, termina o tempo, ao revés do dia traz a noite os conflitos do dia, a
paixão amargurada quando o papagaio de papel sobe e perde-se no Céu, o orvalho
dentro de mim em pequenos salpicos de sangue, tenho pena do Ricardo, tenho pena
da Madalena, e o sangue
Hoje
vi-te pela primeira vez, tinhas no olhar o mel da madrugada, tinhas nas
olheiras o rio da paixão, quando a noite geométrica de um cardo dorme, senta-se
sobre o tapete do silêncio, a noite habitada pelos fios de nylon das pirâmides
de vidro, tinhas fome, escondias-te num verso envenenado pelo cio, engatava-te
como se engatam gajos em Belém, não faz mal, o tempo há-de dar-me razão, um
dia, quando partires para as borboletas em flor, não havendo outro, vou eu,
velho, submerso em ossos perfumados das sílabas de papel, não faz mal, não
importa, e o sangue,
E
o sangue rebelde nas veias de um covarde, o doente malcriado, sonâmbulo e
indisponível das auroras assustadas, Ricardo e Madalena
Amanhã,
meus queridos, amanhã,
E
Ricardo e Madalena enjoados pelas umbreiras da loucura, a casa parecia uma
espelunca recheada de rochedos, o sono, o lixo espalhado por cada milímetro
quadrado, em esquadria, ele mentia
Está
tudo bem meu amor, está tudo bem,
E
ele mentia, não estava nada tudo bem, não havia locomotivas com sabor a Primavera,
e ele, lá longe, entre gemidos,
Madalenaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Lindíssima,
O
era, confesso que nunca mais abri a porta de entrada, a sala sempre escura,
negra, vazia, e o escuro sentado no sofá da inocência,
Dormes?
Acordou
a manhã, a alegria do nascer do dia, o rosto inclinado do homem do terceiro
esquerdo, os gemidos de Madanela, UIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII, ao fundo o
rio, o Tejo entre os parêntesis da meninice dela, os lábios, o engate junto ao
copo de uísque, já está, esfregava ele as mãos,
Tenho
medo, confesso que nunca tive jeito para a escrita, não gosto de escrever, ler,
gosto é de brincar num jardim junto ao rio,
Dormes?
Claro,
acordou o dia, madrugada provisória numa greve de fome, tenho fome, abraço-te e
beijo-te, levo-te para o quarto, encostas a cabeça ao meu peito e choras,
recordas as manhãs numa qualquer rua da cidade entre bebidas baratas e quartos
de esconderijo, claro que este corpo pertence-te, sempre te pertenceu, mas não
gosto dele, mas não tenho braços para arcar com tanta dignidade, sobre a cama,
ele parecia uma árvore em poiso, sobre a cidade, o rio, o barco que fode o rio,
e o rio que mata o amor da minha vida?
Lindíssima.
Francisco
Luís Fontinha
Domingo,
17 de Abril de 2016