sábado, 13 de maio de 2017

Sonho numa noite de suicídio


Nada disto sonhei

Quando te abracei pela última vez,

Havia silêncio,

Havia uma imensurável espada de luz

Descendo o meu corpo desnudo,

Sabia que todas as palavras repetidas nas janelas do teu olhar

Eram apenas sombras debaixo do luar,

Um flácido orgasmo de solidão iluminava-nos

Nas ranhuras ténues dos túneis da vergonha,

Partiram, todos,

Hei-de escrever no teu peito o velho poema da solidão,

A passadeira encarnada pronta a ser pisada pela tua mão

Como um petroleiro em cio,

Hei-de esculpir nos teus seios a presença da minha ausência…

Um vazio poema arrancado da ingrime folha em papel,

O sono voltou,

E nada disto sonhei…

Afligi-me a paixão dos desertos,

Afligi-me o tempo perdido que a tua boca construiu neste muro em xisto,

Abraças-me pela última vez,

Havia silêncio,

E nada disto sonhei na áurea madrugada da morte.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 13 de Maio de 2017

sábado, 6 de maio de 2017

Os dias das noites cem dias


Os dias entre dias

Nos dias sem dias…

Cem dias passaram

E sem noites

Cem noites me acorrentaram

Aos livros perdidos nos dias

Aos livros perdidos nas noites

Sem dias

Cem dias passaram

E sem noites acordaram

Os dias

Sem dias

E cem noites

Acordados

Nos escombros do papel queimado…

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 6 de Maio de 2017

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Os barcos em mim


Recordo o teu olhar

Nas planícies das amoreiras ancoradas

Sinto no peito a alegria de sofrer

Enquanto o mar se despede de mim

Estou só!

 

Muito só!

 

As fogueiras da noite

Hipnotizam o suor cansado das madrugadas adormecidas

Os barcos em mim

As cordas em mim

E as âncoras da solidão descem-me pelo corpo bordado pelas tuas mãos…

Muito só!

Estou só!

 

Regressa a insónia nocturna da boca

Enquanto na taberna ele encharca o melódico corpo em papéis de uísque

E pedacinhos pigmentos de uma caneta envelhecida

Meu querido

Porque partiste?

 

As palavras em vão

As palavras embriagadas pelo teu sorriso

Navegando no meu peito

Sempre que uma nuvem me abraça,

 

Sem vertigens…

 

A voz sonolenta que desencanta a ferrugem dos teus cabelos

Na sombra de um jardim abandonado por ti

Sento-me no teu colo

Imagino o vento nas tuas coxas

Quando se diluem nas escarpas de um poema…

 

Estou só!

 

Muito só!

 

Invento pontes em esparguete para te fazer feliz…

 

O medo

As algibeiras desterradas nos rochedos da morte

Porque partiste?

Tínhamos tanto para desenhar no teu silêncio

Tínhamos tantos locais para aportarmos…

E partiste…

Estou só!

 

Muito só!

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 1 de Maio de 2017

domingo, 30 de abril de 2017

Feitiço da madrugada


O desgostoso ancorado

Autómato desajeitado das tardes infelizes

O corpo fumado

Entre paredes de xisto e perdizes…

Da montanha de areia

Descendo pela veia

No braço do enforcado

O desgostoso

E desamado

Feitiço da madrugada

O corpo encostado

Aos pilares sombreados da falsa calçada…

E do rio vem a semiófora rebelião do desempregado

Malditos carneiros

Pastando na planície do amortecido emplastro desassossegado

A fotografia rima com preto-e-branco

Mais branco do que preto

Os olhos pintados de sonâmbulas bolhas de luar

O desgostoso

E desamado

Feiticeiro da noite

Volátil cansaço dos silêncios abandonados

Quando regressam os rochedos

Aos claustros fumados…

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 30 de Abril de 2017

sábado, 29 de abril de 2017

Sombra de viver o infinito sorriso do vento


Em direcção à morte

O vento se despede da solidão

Sem perceber que a manhã se suicidou contra os rochedos da insónia

A noite chegou

Trazia na algibeira o Universo remendado pelos papéis da agonia…

E um homem espera desesperadamente pelo seu amante,

Escrevo-te,

Junto ao mar

Os petroleiros do desejo em soluços

Como as estrelas pregadas no Céu nocturno das fotografias prateadas,

Escrevo-te,

Espero pela alegria da distância abrupta da imensidão do tempo,

Espero pela ausência do teu peito

Fundeado num qualquer porto esquecido numa qualquer cidade…

Em direcção à morte

Os alicerces do medo entre pergaminhos e livros de veludo

Correndo a calçada que abraça o rio,

A areia do teu corpo semeado nas mãos do teu rosto,

E não sabias que do fogo da inocência

Um suspiro se ergue até ao pôr-do-sol,

Desisto,

Sento-me no jardim com vista para a tristeza,

E um copo de uísque se despede de ti,

Até logo,

E escrevo-te nesta angustia de viver

No sonho do veleiro abandonado,

Fujo com o barco,

Deixo-te,

Abandono-te…

Sem perceber o desejo do meu corpo

Nos parêntesis da memória,

Escrevo-te,

Junto ao mar…

E escondo-me da tua sombra.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 29 de Abril de 2017