sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Lágrimas de marfim


Onde habitas, meu amor das intempéries...!
regressadas visitas,
o adeus...
onde habitas, meu amor das nuvens encarnadas,
quando das tuas mãos rompem madrugadas,
e a melancolia...
nos abraços do dia,
onde habitas, coração incendiado,
sem sorrisos, e no desejo... inventas o cansaço,
e no desejo... os teus lábios de púrpura insónia,
não tenho memória, nem estória...
nas minhas tristes palavras,
onde habitas, meu amor das intempéries...
de vidro, de lata... de chocolate,
no olhar uma jangada,
e nos seios a janela com vista para o mar,
os rochedos dos teus sonhos,
onde habitas, meu amor de prata,
navio, caravela... sombra nocturna da cidade interrompida,
de vidro, de lata... disfarçada de aço laminado,
assassinas-me nos livros que nunca vou escrever,
amar, amar a montanha esquecida,
amar o amanhecer...
como se ama um cigarro a arder...
e no entanto, não me canso de te procurar,
endereço desconhecido,
País inabitado... há um planeta em polpa de tomate,
um desenho,
uma ribeira recheada de gente...
um café colorido de amargura,
e no fundo da chávena... as lágrimas de marfim...
a tristeza dos quatro ventos enamorados,
a vodka embriagada nas mãos de um Cacilheiro,
onde habitas, meu amor embrulhada em prismas de luz,
como um velho tecido estampado...
na inquietante avenida onde dormem os homens desgraçados.



Francisco Luís Fontinha
Sexta-feira, 24 de Outubro de 2014

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Os teus lábios


Os teus lábios são poesia
que os meus frágeis dedos acariciam...
são uma ilha
sem nome
deserta
com cabanas de luz,
os teus lábios são geometria
geometria cansada
riscos
traços longitudinais
… e verticais
que não beijam mais,

Os teus lábios não pensam
sofrem
ou não sofrem...
os teus lábios que mastigam as minhas palavras
quando uma caravela desaparece no teu olhar
e sorri... lá longe...
os teus lábios que se perdem nas escadas do amanhecer
os teus lábios que brincam no silêncio e não sabem escrever
… os teus lábios
madrugadas em papel
que o meu peito absorve
que o meu peito... transforma em cinza,

E voam
voam como insónias prisioneiras de um Oceano de estrelas
e voam
os teus lábios acabrunhados nos lânguidos lençóis de seda...
como pássaros sem penugem...
como espingardas sem balas,
os teus lábios que matam
matam palavras...
matam... matam cidades inteiras
os teus lábios são telegramas fantasma
sem endereço
sem medo da noite...



Francisco Luís Fontinha
Quinta-feira, 23 de Outubro de 2014

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

As palavras de amar


Vão morrendo as palavras de amar
quando desperta no amanhecer
o quadrado silêncio mergulhado no círculo lunar,

Faço-me à vida,
caminho sonâmbulo sobre a fogueira dos meus poemas
até que eles se transformem em nada,
olho-me no espelho da agonia, sinto na garganta a tempestade da paixão,
carrego nos ombros o peso do meu próprio caixão,
em vidro, e com fotografia a preto e branco para o mar,
saboreio o teu corpo nas pálpebras verdes dos livros não lidos,
perco-me em ti... sem saber se amo, sem saber se estou vivo nesta campânula de lágrimas,
e o desassossego inventa-me como se eu fosse um papagaio de papel,
de muitas cores,
como muitas cartas de amor
no tempo destruídas pelas suicidas lâminas da geometria,

Tenho saudades de ti...
minha Lisboa, meu amado Tejo... meu amante Cais do Sodré,
percebia nas paredes húmidas da noite um corpo em translação,
uma puta que procurava um ombro de gesso,
um gajo embriagado que cuspia finos fios de fogo...
e terminava quando a cidade acordava,
eu amava, eu não amava...
eu sentia nas amoreiras flores o beijo de ninguém,
o pavimento paralelepípedo da tristeza começava a transpirar,
ouviam-se os gemidos delas, ouviam-se os gemidos deles...
e ao longe,
um apito encurralado entre carris de aço em direcção a Belém,

(Vão morrendo as palavras de amar
quando desperta no amanhecer
o quadrado silêncio mergulhado no círculo lunar),

Esquecia as mãos na algibeira,
iluminava-me na fragrância madrugada quando um banco de jardim corria para o rio,
misturava-se com um velho Cacilheiro, às vezes... tossindo, às vezes... às vezes coxeando...
como um mendigo prisioneiro de um vão de escada,
como um marinheiro em busca de sexo, drogas... e um par de asas...
nunca voei,
e havia noites que sobrevoava a minha amada Lisboa,
como um louco,
como um prego de aço no barbear da manhã...
disfarçava-me de ponte metálica...
e desenhava sorrisos nos vidros pintados de negro embalsamado,
até morrerem todas as palavras de amar...!


Francisco Luís Fontinha
Quarta-feira, 22 de Outubro de 2014