segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

caos

foto de: A&M ART and Photos

há uma ordem indefinida que habita no centro do teu corpo
a tempestade preguiçosa dos barcos encarnados abraçam-se a ti
e tu parecendo uma ardósia em fim de tarde
escreves-te e alimentas os volantes e êmbolos da tristeza
escreves-te e gaguejas as palavras mortas que o vento transporta
como nuvens de poeira sobre a pele húmida da paixão...
apaixonado sempre
sempre... como um vulcão entranhado na montanha dos sonhos
trazes-me os cinzeiros com asas voláteis depois dos desalojados cigarros partirem na tua mão
recordas-te do silêncio
e acreditas nas pedras quentes dos telhados invisíveis da insónia
há uma ordem secreta dentro de ti que não quer movimentar-se na roldana dos beijos cinzentos,

lembras-me as chuvas endiabradas das sanzalas com telhados de cacimbo
eu chorava porque tinha acabado de perder um simples papagaio de papel
tinha quatro cores
e... e um velho cordel
havia em ti uma ordem
que do centro do teu corpo ao meu olhar perdia-se como se perderam todas as sombras do desejo
e despejados nós
continuamos a procurar marés de papel das cartolinas suspensas nas paredes da velha escola
hoje
sei...
sei que há uma ordem embrenhada na desordem
e as tuas vãs palavras vivem no caos da solidão.


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013

domingo, 29 de dezembro de 2013

O espelho com lábios rosados

foto de: A&M ART and Photos

Não tínhamos sabão para lavarmos os pecados cometidos durante a noite, da torneira do lavatório, um objecto quase em putrefacção devido ao estado de abandono a que foi submetido durante os últimos anos de permanência do habitante caquéctico a que dizem ser meu tio, apenas um fino fio de ferrugem, abria-a, fechava-a, e na esperança que de pequeno fio se transformasse em grande novelo..., mas... nada, sempre pingos de ferrugem, e mais nada,
Vida desgraçada, dizem alguns de vocês,
Vida alegre e de felicidade, acho-o eu, porque feliz feliz é aquele que não sabe o que diz, como eu, e voltando ao sabão, em falta dele temos sempre a fé para nos redimirmos, e claro, começamos a rezar, rezamos tanto que quando terminamos... tinham passado quase trinta e cinco dias, sem comer, sem beber, sem beijos, sem abraços... apenas rezávamos e de vez em quando...
Vida desgraçada, dizem alguns de vocês,
Olhávamos a torre da velha Igreja e sentíamos o vento baloiçar nos corpos nossos caídos no soalho da solidão, dizias-me que
Amanhã tudo será melhor,
E hoje, que é o teu amanhã, não tudo melhor, mas... da torneira do lavatório apenas um pequeno fio de ferrugem e sabão, não sabão para lavarmos os pecados cometidos durante a última noite, perguntei à ferrugem se sabia quando tínhamos água
Que
Não o sei, nada percebo disso e apenas respondo ao senhor seu tio, e eu respondia-lhe que
O senhor meu tio foi-se, esfumou-se... voou enquanto dormíamos... como dois lençóis embebidos em sémen e gemidos roucos dos cigarros acabados de fumar,
Que, ainda fumas?
Que
Não o sei, não o sei..., Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor... que
Não, deixei de fumar e pecar,
Não preciso de sabão, não preciso da água do lavatório nem dos lençóis embebidos em sémen e velhos gemidos, o senhor meu tio?
Foi-se,
Que..., que bicho mordeu ao seu namorado?
Saudades, apenas,
Ciumes?
Da
Da vida desgraçada, dizem alguns de vocês, ou...
Ou da noite em que tínhamos a certeza que nunca mais terminaria, perguntei à ferrugem, sentei-me na sanita e pasmei-me em perceber que dentro de nossa casa habitava uma comandita de trombudos deambulantes clandestinos pássaros que nos habituamos a apelidar de ferrugem e de ferrugem
O quê?
E de ferrugem nada tinham, sempre asseados, sempre penteados, sempre..., APRUMADOS,
Não tínhamos nada, parecíamos dois voyagers em busca dos caminhos perdidos, perguntava-lhe se ainda se recordava da tarde quando caiu sobre nós uma gaivota encharcada e com pequenos pedaços de
Ferrugem?
Lama, madeira da Índia e tílias falidas depois da tempestade lhes derrubar todo o telhado em zinco, a palhota a descoberto destruiu os poucos tarecos que sobraram do regresso a casa, e num caixote semelhante a uma pequena caixa de sapatos conseguíamos meter o que tínhamos de tão pouco o ser...
Algumas da cabras deixámos-las no pasto, lá ficaram, por lá ainda devem andar, quantos às vacas, essas, já devem ter morrido, passou tanto tempo meu querido filho
Tempo demais mãe, tempo é muito e às vezes é tão pouco,
A não ser que alguém nos empreste uma barra de sabão e um alguidar com água limpa, talvez a vizinha do quarto esquerdo
Essa não, essa não... tem a mania que é rica... todo cheia de coisas, não, essa não,
Então esperamos pelo regresso do barco que à quase quarenta e dois anos ficou de vir, e ainda não veio, e quem nos garante que ainda exista?
Ninguém, ninguém...
Tempo demais mãe, tempo é muito e às vezes é tão pouco, não tínhamos sabão para lavarmos os pecados cometidos durante a noite, da torneira do lavatório, um objecto quase em putrefacção devido ao estado de abandono a que foi submetido durante os últimos anos de permanência do,
Do VELHO?
Do minguante espelho com lábios rosados e seios de neblina, hoje sabemos que tudo foi uma mentira, mas ontem
Amanhã tudo melhor, meu filho, tudo melhor...
E não melhor, e não melhor, porque a ferrugem nunca cessou de crescer em nós, porque o lavatório ainda hoje chora as lágrimas negras das noites frias de Inverno, porque
Do VELHO?
Porque o VELHO... o VELHO era em aço laminado... a quente, a quente.


(não revisto – ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 29 de Dezembro de 2013

espuma verde

foto de: A&M ART and Photos

um pequeno silêncio de espuma verde envolvia o teu corpo
a nuvem do desejo acordava lentamente nos teus olhos
havia um pequeno holofote a que chamavam de solidão...
e permanentemente em suspenso... começava a desaparecer do céu tua mão
o medo vestia-se com a roupa tua da noite anterior
trazias na algibeira pequenos sons melódicos e papeis poéticos
que decidimos lançar na fogueira da lareira da insónia
abrimos a janela da noite
e a noite recebeu-nos como se fossemos dois pássaros moribundos
cansados de voar
o teu corpo mergulhava no meu
e um líquido esponjoso ressaltava contra os vidros tristes da madrugada
queria ser como tu
uma rosa sem destino
sem nome
apenas numa palavra...
apenas
e só
uma letra prisioneira no teu cabelo castanho...
tínhamos o luar e as estrelas convexas do céu da inocência
e as lágrimas da tarde junto ao rio
deixaram de correr no teu rosto de roseira brava
agarravas-me com os teus dentes de marfim
e sentia no meu peito as tuas garras de mpingo solitárias das ruas da cidade dos morcegos
e tão triste
o apego
o sossego
o desemprego...
e só
tão só
que suicidou-se ao primeiro segundo de acordar a luz triangular do sorriso...
desgovernado
embriagado...
apenas
e só...
ele... o coitado... um pequeno silêncio de espuma verde envolvido no teu corpo.


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 29 de Dezembro de 2013