sexta-feira, 7 de junho de 2013

As gaivotas embriagadas

foto: A&M ART and Photos

Esqueço abismos e inglórias
acordo sabendo que deixaste de me esperar no banco granítico
do jardim invisível
o nosso pequeno quarto sobre as rochas viradas a Norte,

Esqueço palavras e sonhos
imagens
esqueço os sofrimentos das nocturnas esplanadas que a escuridão engole
e transcreve para o muro em betão que divide os nossos corpos separáveis hoje,

Acorrentados ontem
(lembras-te – querida solidão de areia?)
como barcos prisioneiros em pilares de sombra
e esperando que o luar desça as escadas dos cais desassossegados,

Esqueço a ti
como as serpentes envenenadas debaixo do divã
esqueço a ti embrulhada no capim húmido dos lençóis da madrugada
e sei que deixaste de me esperar,

E nunca mais te vi na janela da manhã
como o fazias ontem
antes de ontem...
quando regressávamos dos corredores de aço com sulcos finos em papel de parede,

Rosas em decomposição
corpos de poemas em putrefacção não sabendo eles que deixaste de olhar o sol
e começaste a caminhar mar adentro
como um paquete sem rumo,

Descendo calçadas de vidro
versos cansados
palavras e palavras e palavras
para quê?

Versos malvados
esqueço abismos e inglórias
acordo sabendo que deixaste de me esperar no banco granítico
do jardim invisível...

Tristes
estas noites quando os relógios morrem
e o tempo cessa as suas garras
no pescoço teu onde dormem as gaivotas embriagadas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Camas de solidão em almofadas de listras

foto: A&M ART and Photos

Viajo entre curvas ínfimas que me transportam às sílabas papel dos lábios jardins camuflados dentro da cidade, tenho ruas só minhas, casas desabitadas, onde, só, adormeço, passos algumas horas, porque tenho a poder de transformar horas em dias, recheios de apartamentos sujeitos a vandalismos proliferam escadas abaixo, e entre mim e o corrimão, penso-o, possivelmente nem uma mosca, daquelas esqueléticas, conseguem colocar-se a meu lado, subo só, e desço descalço, como se não existissem espelhos e cobertores, apenas uma rampa inclinada, voando eu, até encontrar a porta do prédio ao lado, uma velha pastelaria, moscas, estas não esqueléticas, coabitam com os croissants e os restantes bolos, lâminas de barbear, pilhas, jornais e revistas, mulheres nuas dentro de papel que acabará numa casa de banho pública, peço um café curto, e sobre a mesa onde esqueço os cotovelos, vejo uma chávena quase a abarrotar de café, procuro na algibeira sessenta cêntimos de euros e despeço até sempre desta horrível pastelaria perdida numa avenida incógnita, como as pedras da Ajuda, caminhadas com milhões de pés, às vezes, com o vento, tombávamos no chão, havia desníveis, ora subia, ora descia, e claro, o chão sempre foi a nossa melhor cama, depois do sono, acordavam os enjoos, o fígado inchado, a dor no estômago, e
Tonturas,
E os cigarros esquecidos na prateleira junto ao uísque e a migalhas de haxixe que de um caixote em chapa, de nome armário, ficavam o santo dia acorrentados, até que vinha a noite, abríamos a porta, e seguíamos viagem pelas ruas mais escuras que habitavam junto ao rio, corríamos, corríamos... e quando nos sentávamos nas margens do rio, apenas sós, cruzávamos as pernas, eu, os cigarros e as migalhas de haxixe, e
Tonturas, pernas torneadas por um verdadeiro artista plástico, bela, o corpo parecia um Stradivarius, e o som, o som escorria um líquido a que os humanos chamam de suor, pequenas gotinhas com sabor a incenso, ou a doçura, ou... a música,
E uma almofada amarela com bolinhas encarnadas, brancas ou negras, mergulhava nos lençóis desejo da noite, listras, brancas, intercaladas com o silêncio do capim, e nas paredes do sono, quadros, pinturas abstractas com mãos de alicerce, uma ponte despedia-se do rio, e no rés-do-chão da rua onde dormíamos quando fingíamos desgostos e dores de cabeça, havia sempre uma mosca, esquelética, não esquelética, e que às vezes era tão amorosa que dormíamos os três juntos...
(os cigarros, o sono, as migalhas de haxixe, duas moscas, uma esquelética e outra não esquelética, e claro, eu)
… amarrados à almofada, com o medo de perdermos as listras brancas, porque as negras não corriam esse risco, visto ser noite, e o negro dilui-se na escuridão, como os beijos de duas pessoas que se desejam,
Um homem e uma mulher, dois homens ou duas mulheres, porque o importante é não perdermos as moscas, as esqueléticas e não esqueléticas, os cigarros, as migalhas de haxixe, as mãos quando se entranham nas tuas coxas, e sempre, o todo, o inesquecível abraço, os sexos imprimidos nos espelhos das janelas, e feliz Stradivarius voando sobre dois corpos nus sobre lençóis invisíveis, e almofadas com listras, coitadas, acorrentadas à solidão...
E esqueci-me do uísque.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Eras quase noite

foto: A&M ART and Photos

Havia uma louca paisagem
acorrentada à Cinderela manhã com sorrisos de nada
um pedaço de ti mergulhava em sombras com braços despidos
proibidas as melodias teu cansaço...
havia uma tal de Josefina... inventava tigelas de marmelada
que à janela secavam e às vezes dos vorazes sons do papel vegetal
voavam neblinas de insónia e projecteis de orvalho no final do dia
como acontece aos meninos que brincam debaixo das madalenas árvores de sonhar...

Eras quase noite
trazias-me os sonhos embrulhados em finas toalhas bordadas pela mãe Arminda
(às vezes zango-a dizendo-lhe que são trapos)
velharias em exposição que um vendedor ambulante tentava impingir-nos a todo o custo
cachimbos e bonés de militar da ex-URSS... livros velhos com presença de dores musculares
havíamos embainhado os relógios nossos pulsos em pequenos cabelos ramificados
como cabos de aço a prenderem petroleiros no corredor desgosto do ser
o papel de embrulho sempre deitado sobre o velho balcão em madeira apodrecida,

O cheiro da roupa depois do sexo
o perfume do sémen impregnado nas oliveiras além socalcos
como ventoinhas em suspenso no tecto da cubata esquecida sobre o Tejo
tínhamos medo da ponte de ferro
e dormíamos nos bancos de jardim porque queríamos escrever sobre os joelhos cansados da madrugada
havia uma louca paisagem com uma louca casa e uma louca varanda
dos teus loucos beijos
em tuas grandes loucas mamas de amanhecer violento depois das tempestades palavras...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha