S. Martinho do Porto,
Janeiro de 1989,
Deste quarto, dentro
deste quarto, olho o mar e pinto o mar nos meus olhos, antes de adormecer. Deste
quarto, onde me escondo, não sabendo porque me escondo, neste quarto pinto o
sol no tecto, no tecto deste quarto, e sinto neste quarto, dentro deste quarto,
o assobiar dos barcos da minha infância.
Neste quarto, de onde
oiço o mar, pincelo o meu olhar com estrelas-do-mar e silêncios de alegria, depois,
depois peço ao guarda deste quarto, peço ao senhor António, que liberte todas
as serpentes, que dormem neste quarto e não gostam de poesia, como todos os que
detestam poesia, que são muitos, que são alguns, não pertencem a este quarto,
de onde eu, pela janela deste quarto, sinto o cheiro do mar, e depois,
E depois nada. Fico dentro
deste quarto.
Vou à janela deste
quarto, puxo por um cigarro, acendo-o preguiçosamente, eu oiço-os
Entre gritos, ao lado
deste quarto,
Sem perceberem que dentro
deste quarto,
Habito eu, o poeta
suicidado por uma bala de medo numa tarde junto ao Mussulo.
Então senhor António, as
serpentes?
Sei lá eu das serpentes,
menino,
Sei lá eu.
E de dentro deste quarto,
nem eu, nem eu, senhor António,
Nem eu.
Neste quarto, de dentro
deste quarto, oiço o sorriso das girafas, brincando no capim como se fossem
crianças pinceladas de saudade, neste quarto, dentro deste quarto todos os
papeis são loucos, todas as palavras são loucas, neste quarto, de dentro deste
quarto, todos os Sábados, junto ao rio…
Então o senhor António
pensava que as serpentes não sabiam ler?
Sei lá eu, menino,
Sei lá eu,
Nem eu, de dentro deste
quarto,
A bala sorriu e caiu no
pavimento lamacento. Dentro deste quarto, neste quarto, aos Sábados, oiço o
mar, desta janela sem sorriso, enquanto o senhor António se vai travando de
amores com as serpentes,
E o menino,
O menino, deste quarto,
de dentro deste quarto, deste quarto, dentro deste quarto, olha o mar e pinta o
mar nos seus olhos, antes de adormecer. Deste quarto, onde se esconde, não
sabendo porque se esconde, neste quarto pinta o sol no tecto, no tecto deste
quarto, e sente neste quarto, dentro deste quarto, o assobiar dos barcos da sua
infância.
16/09/2023
Luís