terça-feira, 8 de agosto de 2023

Despedida

 Despeço-me dos teus olhos de mar

Despeço-me dos teus lábios de mel

Ausento-me dos teus olhos

E dos teus lábios

Amordaçados

 

Despeço-me sem me despedir

Sem deixar palavras sobre a geada

Despeço-me assim

Sem mais nada

Junto a este jardim

 

Despeço-me da noite

Noite

Quando a noite

Também se despede de mim

Despeço-me quando se ergue a madrugada

 

E depois de me despedir

Dos teus lábios de mel

E dos teus olhos de mar

Vou à procura do poema

Vou desenhar dentro de mim… um novo dia

 

Vou escrever em mim

Um outro poema

Despeço-me dos teus olhos

E dos teus lábios

E desta fogueira em chama

 

 

08/08/2023

Árvore

 Fui Rei por um dia

Miserável

Por muitos mais

Saltei rios

Roubei jornais

Escrevi poesia

Vesti-me de ponte

Pincelei o olhar de silêncio

Fui Rei

Fui árvore prisioneira daquele monte

E no monte

Semeei

Palavras

E vinhedos de sono

 

Fui Mordomo

Artista poeta

Fui Rei

Fui cama

Rua

Sem janela

Poema

Fui Rei Lua

E tantas vezes

Lua

Nua

Sobre o mar

 

Fui Rei por um dia

Miserável

Por muitos mais

Saltei rios

Desenhei nas tuas mãos… postais

Palavras em saudade

Palavras

Que as madrugadas

Lançam contra os muros da infância,

Fui Rei

Fui o Leão da selva

Fui insultado por um imbecil,

 

Fui Rei por um dia

Miserável

Por muitos mais

Fui poema

Sou poesia

Sou manhã vestida de Rei

Ou noite

Sem o dia

Disfarçado de mendigo

E sem-abrigo

Tão feliz

Tão contente,

Fui Rei

Fui poeta…

E fui teu amante.

 

 

 

08/08/2023

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Meia-noite, noite.

 A meia-noite

Noite

Quase noite

A meia-noite da outra noite

Quase, quase

A ser noite,

 

Esta meia-noite

Quando deixei de ter noite

Depois de perceber que a noite

É uma roda

Com estrelas

Com pontos de exclamação encarnados

E pontos de interrogação

Meio calmos

Meio agitados

Pincelados

De azul-paixão,

 

Noite

Quase noite

Esta meia-noite

Que dentro do meu peito

Labora

Barafusta

Contra o cadáver do terceiro esquerdo

E depois

Quando for meia-noite

Fuma-a

E escondo-a na varanda,

 

Noite

De enterro noite

Quase meia-noite

No alpendre

Da outra noite

Sendo noite

À meia-noite,

 

Os meus ossos

Noite

Em pó refinado

Meia-noite

Quase noite

Neste corpo de meia-noite

Desta noite

Quase corpo

Quase meia-noite.

 

 

 

07/08/2023

Prisão de feras

 

Esta prisão de esferas

De esperas

De encontros

E desencontros

Esta prisão de feras

Acorrentadas ao gradeamento

Da solidão

Esta prisão

De meras

Nuvens de espuma,

 

Na bruma

Cidade que o Diabo abençoou

Desta pobre cidade

Sem cabeça para pensar

Sem pensar enquanto a cabeça

Anda

Gira à volta do sol,

 

O dó

O pequeno dó

Da dor

Em dor

Ele

Completamente

Doente

E ausente,

 

Doí-lhe o dente

Que já não sente

A paixão

Que era ardente

E ardeu

Na fogueira

Junto ao rio “um dia será”

E antes de adormecer

Toma drageias em forma de cigarros,

 

Dorme docemente

O menino

Nos braços de sua amada,

Dorme

Docemente dorme docemente

O clitóris do desejo

Quando de um beijo

O menino e sua ausente

Amada que sente,

A porta

Abre-se

A janela encerra-se para sempre

Um gaiato vende mortalhas e afins…

E o cacilheiro que eu tinha de apanhar

Engasgou-se

Cento e doze em acção

E morreu

Enfarte

Enfarte de coração,

 

Estaria apaixonado

Pergunto eu

Pois segundo o meu professor de TH

O coração é a bomba mais perfeita que existe…

… e não foi construída pelo homem,

 

Dá que pensar, professor.

 

Então

O que é a paixão?

Se o coração é uma bomba,

Será a paixão um fluido?

E o amor?

Uma válvula

Qualquer coisa como um pequeno vedante

Uma porca

Um parafuso

Um fio eléctrico

E o raio do homem sem fuso

E sei lá eu… o meu nome,

 

O eléctrico

Avança

Rio acima

Agacha-se quando passa debaixo da ponte

Olha-a

(que linda estrutura)

Como se contemplasse o último sorriso do paraíso

E sem juízo

É agora maquinista da CP,

 

Um apito

Acorda do teu peito

Uma voz rouca com uma placa de identificação na lapela…

Grita-me

Olho-a

E odeio-a

Depois

Sempre aquele maldito rio

Que umas vezes o apelido de paixão

E outras

Muitas outras

De ranhoso

Incrédulo às mãos de Deus

Criador do parafuso

E da porca

E da broca

Que fura

A porta

E da outra porta,

 

Perco-me nesta prisão de esferas

De esperas

De espermas

De encontros

E desencontros

Esta prisão de feras

Acorrentadas ao gradeamento

Da solidão

Esta prisão

De meras

Nuvens de espuma,

 

Umas

Com cor e coração

E outras

Sem cor

Com comichão

 

Ergue-se

O morto desta cidade de enganos

Deste paraíso invisível

Onde se escondem as segundas-feiras da semana anterior,

E uma equipa de engenheiros…

Projecta as terças-feiras das próximas semanas,

 

Partindo do principio

Eles

Que a Terra não deixa de rodar

Que pare repentinamente

Travões ABS

Caso contrário

Adeus terças-feiras das próximas semanas,

 

Esta prisão de esferas

De esperas

De encontros

Espermas

E desencontros

Esta prisão de feras

 

E se eu pudesse escolher…

(se me pedissem para eu escolher “algo em que eu me pudesse transformar”, certamente, sem dúvida, queria ser um electrão)

 

Sou então

Um electrão

Prisioneiro de esferas

De encontros

E desencontros

Esta prisão de feras

Eu

O electrão

Com velocidade de aproximadamente trezentos mil quilómetros por segundo

Contra a parede

Fodeu-se o poeta,

O artista,

E todo o resto da cidade dos enganos,

 

Deita-se,

Dorme,

Deixa de saber quem é.

 

À meia-noite

Levanta-se

Grita

De pé;

(esta prisão de feras

Acorrentadas ao gradeamento

Da solidão

Esta prisão

De meras

Nuvens de espuma).

 

 

 

07/08/2023

Francisco

domingo, 6 de agosto de 2023

O Tolo

 

(Ópera em três actos)

 

Música: Francisco.

Cenários: Luís.

Guarda-roupa: Francisco & Luís, Associados.

Dança: Francisco Luís.

Personagens:

- Alzira;

- Carlos;

- O Tolo;

- Madame (X);

- Rio;

- Os socalcos e a sombra dos socalcos;

 

 

Primeiro Acto:

(o Tolo descobre que pensa)

(junto ao Tejo, um apito; AL Berto)

Tão triste

Mário…)

 

Quando me sento

Nesta pedra cinzenta

Às vezes

Lamento

Outras vezes

Invento

Que me sento

Nesta pedra cinzenta,

 

Às vezes

Acredito

Que dito

O que penso

Quando não penso

E descubro que penso

Que descubro que me fica lindamente

Este lenço em seda

Com que me enforco

E bordado pela inocência,

(Alzira aproxima-se, descreve um semicírculo de cento e oitenta graus,

Toca-me, e pergunta-me)

Porque pensas

Carneirinho

Soldado do monte

Do pasto

Das cabras amansadas

Quando ao longe

Regressam os Cacilheiros de Almada,

Não penses

Carneirinho

Não penses que as cabras

Que saltam de poiso em poiso,

(começa a orquestra: duas palmadas no rabo e um travessão, ponto paragrafo, na sua mão, Alzira, treme de frio ou de outra coisa qualquer, em pleno Agosto…)

 

Carneiro não pensa

Carneiro nasceu para sofrer

Para foder

Ser fodido

E acabar num pote em ferro

À meia-noite

Em ponto,

(o parvo do Carlos desliga o interruptor, apagam-se as estrelas, e apalpamo-nos uns aos outros como Deus nos apalpou e comeu)

 

Começa o dia

Começa o dia e o gajo descobre que pensa

Que existe

Pois claro

Mário de Sá-Carneiro

Pensava.

Um tiro nos miolos…

Florbela

Que era Espanca

Que era tão bela,

Três tentativas,

Duas falhadas,

Uma,

A correcta.

 

Abro a porta.

(Alzira corre pela seara do trigo desejo em que ela tantas tardes, adormeceu nos braços do Tolo)

 

Não corras

Alzira

Corre tu

Carlos

Não corras

Corras

O risco

De ser Tolo

E pensar.

 

Segundo Acto:

(o Tolo apaixona-se pela floresta)

(as calças que me deram hão-de ajustar-se à medida do meu corpo…, AL Berto)

 

Estavam a floresta o rio os socalcos e as sombras dos socalcos

Estavam todos á conversa

(batem à porta da biblioteca, Madame (X), abre a porta numa rotação de trinta e cinco graus anti-horário, espreita e sorri, quem será esta, penso)

Todos nós nos calamos

Calou-se o Tolo

Calou-se o rio

Calaram-se os socalcos e as sombras dos socalcos

Uma voz em gritos

Agora podemos começar

Começamos então

Uns que se sentam

Outros tantos que se levantam

Menos os que morrem

E aqueles que partiram

Ficamos nós

Aqui em conversa

Dentro desta biblioteca

(o Tolo, sim, Madame, ela que andava à procura do livro de AL Berto

“O Medo”

(perguntei-lhe se já tinha ido procurar na casa de banho, ofendeu-se, respondeu-me mal e acusou-me de assedio…)

E “O Medo” lá está

Por aí anda

Mas o que a Madame (X) queria saber

O que ela queria

Saberia

O outro

Que não eu.

(Alzira acaba de pisar uma mina num qualquer musseque em Angola)

(a orquestra suavemente, ergue-se por entre a plateia, uma jarra com flores, que tocam flauta, começam a mais linda melodia da noite; A Princesa.)

Os barcos

Os barcos atiram-se das prateleiras

Numeradas

Ficção

Poesia

Pintura

Engenharia

Tesão

E física nuclear,

(cabeças de esperma ressequido)

Do silêncio

A Madame (X)

Salta a janela

Mil e duzentos milímetros

Coisa pouca

Uma perna partida

E os ovários descaídos.

O Tolo

O Tolo beija loucamente a floresta

E descobre

Que além de pensar

Que além de…

Também ama.

 

Terceiro Acto:

(o Tolo é preso pelos leitores e pelas leitoras)

(mostram restos de esperma ressequido naquelas cabeças ocas…, AL Berto)

 

O Carlos, fugiu.

(antes de morrer, tremia de frio, e nunca mais tive notícias da Alzira)

(suavemente, ergue-se o coro de silêncios, começa a alvorada e junto à porta de entrada, A Multidão)

 

Graças a Deus

Estás vivo

Meu filho

Prefiro ver-te preso

De que ver-te morto

Não sei

Mãe

Não sei qual é a altura ideal para morrer

(o coro de silêncio cessa de desenhar sons invisíveis nos três círculos de luz, e dos olhos da Alzira, uma cortina de fogo poisa sobre a mesa)

 

Um livro toca no tolo

Ele

Excita-se

Masturba-se dentro da solidão

O livro que tem nome

Preso

Ele também

Às mãos do poeta

Sem porta

Sem janela

Sem cama

O livro vomita

Lança o esperma da madrugada sobre um campo de papoilas

Um pequeno uivo

Coisa pouca

Dança sobre a mesa

O Tolo dança

O Tolo se esquece

Aos poucos

Dos poucos que nunca esqueceu

Dos barcos

Do Céu

Das estrelas

E

(da puta que os pariu, gaguejava o nosso ausentado amigo Luiz Pacheco)

 

Uma lágrima de sangue

Abre-lhe as algemas

E a prometida liberdade

Desce

Corre

Corre para onde,

O Tolo?

 

(o Tolo descobre que pensa, o Tolo descobre que ama, o Tolo descobre que é prisioneiro dos seus leitores e das suas leitoras)

 

 

FIM

 

 

06/08/2023

Francisco