Podia ser ontem
Enquanto as tuas mãos
inchavam no sorriso da ausência
Das pobres janelas
E das portas
De todos os montes e
vales
De todas as pedras
Em todas as árvores
Quando nem todos os
pássaros
E podia ser ontem
Enquanto as tuas mãos
mergulhavam nos lábios da geada
Entre vinhedos
Dos tristes milagres de
Deus.
Acorrentado a este rio
De doirado silêncio
Quando descem sobre mim
as nuvens tempestuosas
Que transportam o sangue
derramado das tuas veias
Quando ainda ontem
As tuas mãos mergulhavam
nas estrelas da noite
Embriaguez dos distantes carrosséis
entre linhas
Dispersas sobre o mar.
Podia ser ontem
Mas ontem era dia de
descanso
O derradeiro repouso
Quando pegas no último
vinho
E o bebes
Veneno
Passaporte para o lunar
destino.
E pobre
Este pobre menino
De poeta enforcado
A trapezista aposentado
Tão pobre
Tão…
Amado?
Quando ainda ontem
As tuas mãos eram
límpidas como a Primavera
Como os gladíolos
Como as palavras quando
se soltam dos lábios
Ressequidos
Mergulhados no ontem
Quando se fosse ontem…
Hoje
Tão pobre
De destino
Este pobre menino.
Podia ser ontem
E a ausência continuava
na gabardine da insónia
Podia
E se fosse ontem
Uma chuva de lágrimas deixava
sobre ti o silêncio
Quando ontem seria pouco
E de pouco em pouco
Aos teus lábios regressam
as sanzalas
E os mabecos que ainda
ontem
Brincavam junto a mim
Quando ainda ontem…
Desenhávamos canções no
vento…
E corações na areia fina
do Mussulo.
Podia ser ontem.
Não o foi porque dizem
que a sexta-feira é dia de azar
Que todas as
sextas-feiras um cadáver de sono
Acorda junto ao jardim
E ainda ontem andava por
aí…
Em pequenas brincadeiras
Entre pequenos soluços
Quando ainda ontem
Das suas mãos
Recebia as palavras
semeadas durante a noite.
E que seja hoje
E que seja amanhã
Porque não sendo ontem
Também não importa
Se foi ontem
Se poderá ser hoje
Ou qualquer dia
Mas se tivesse sido ontem…
Certamente levaria nas
mãos toda a minha poesia.
Francisco
08/04/2023