domingo, 2 de abril de 2023

Cinco pedras de sono

 Ao preço que está a morte

Nem apetece morrer

Ao preço que está a fome

Nem apetece comer

Quanto mais viver

Neste País sem nome

 

Ao preço que está a morte

De todas as mortes

Nem apetece morrer

Comer…

Tanto faz

Quando as palavras são lágrimas

E as lágrimas

São as sobras das palavras

 

Ao preço que está a morte

(está pela hora da morte)

Ao preço que estão as flores

Os beijos

E os abraços

Ao preço de custo

Ao preço da morte

A morte

Nos meus braços

 

 

Alijó, 02/04/2023

Francisco

Girassóis, quiçá um dia

 Girassóis

Palavras que o vento escreve

Palavras que o vento lança

No peito de uma criança

Girassóis

Dos corpos celestes

Aos corpos circunflexos da insónia

Quiçá amanhã esteja sol

Quiçá amanhã seja Primavera

E enquanto procuro as tuas lágrimas

Quiçá

Amanhã seja segunda-feira

 

Girassóis comestíveis

Girassóis ensonados

Com espinafres

E ovos estrelados

 

Quiçá amanhã morra

De qualquer coisa

Senhor

Meu senhor

Quiçá

Quiçá depois da meia-noite

 

Que feliz quiçá

Enquanto dormem debaixo das pontes

Todos os sonhos

Quiçá

De uma meninice ausente

Antes de mim

Antes de tudo

Os girassóis

Que folheio como poemas

Quiçá sem destino

Esses poemas que ardem

Que vomitam silêncios

E dos girassóis

Quiçá

Amanhã

Amanhã ele morra

O poeta e a poesia

O poeta

Quiçá

Ao nascer do dia

 

 

 

Alijó, 02/04/2023

Francisco

Fogueira

 Enquanto essa ribeira

Arde na floreira da tarde

Um pedacinho de silêncio

Voa sobre a montanha

 

Um pedacinho de mar

Vai à janela da manhã

E desenha beijos no areal

 

E a ribeira em labaredas de solidão

Abraça-se aos primeiros pedaços de geada

Que acordaram junto à amendoeira

 

Enquanto essa ribeira

Experimenta as lágrimas das pequenas estátuas…

Os barcos rompem porta adentro

E libertam-se todos os monstros

E fogem todos os fantasmas

E morrem todas as sombras

Envenenadas pelo desejo

 

 

 

 

Alijó, 2/04/2023

Francisco

Flor sem mim

 Desenhei no teu olhar

Uma flor sem idade,

Uma flor com medo de amar…

De amar… amar a saudade.

 

Desenhei nos teus lábios de amendoeira

A cidade antes de acordar,

Uma cidade que dorme na fogueira…

Na fogueira do mar.

 

Desenhei em ti uma lágrima de chorar,

Enquanto a manhã se despede de mim…

Uma flor sem rosto, uma flor cansada de amar…

 

Amar as manhãs em poesia,

Desenhei no teu olhar o meu jardim

E o silêncio do dia.

 

 

 

Alijó, 2/04/2023

Francisco

sexta-feira, 31 de março de 2023

Oração

 Peço a Deus-todo-poderoso

Criador da vagina

E do pénis

Deus dos mares e das terras não cultivadas

Deus da enxada

E do prazer

Deus que inventou o homem

E a mulher

E o homem da mulher

Quando a mulher da mulher

Depois do filho dele

Sentado à esquerda de:

Bem-vindo a casa.

 

Deus misericordioso

Dos Ricos

Dos pobrezinhos

Dos ranhosos

E das ranhosinhas…

Deus

Entre todos os Deuses

E entre todas as equações

E dentro de todas as camas

Em todos os lençóis

Deus do tesão

Da infertilidade

Deus dos asteróides

E dos espermatozóides

 

Peço a Deus-todo-poderoso

Criador da vagina

E do pénis

Servomotor da paixão

Piloto-automático do desejo

Entre duas pinceladas de silêncio

E um grama de tesão,

 

Deus ao cubo

À vigésima quinta potência

Quando a raiz quadrada do medo

Em função do mestre faroleiro

O gajo deita farpas na fogueira

E o desejo abre a janela do paraíso

E Deus

Também o obreiro e criador e mister e pai do filho acabado de nascer

Ranhoso

Ranhosa

Flor em papel

Lápis da madrugada

Quando o Deus

Criador

Designer de todo o Universo…

Morre…

À espera de uma consulta médica:

O louco toma a drageia e esconde a cabeça na almofada.

 

 

 

 

Alijó, 31/03/2023

Francisco

quinta-feira, 30 de março de 2023

O cãopoetacolhãdochãonochão

 CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que se alicerça em ti

Que te come

Que se delicia com a tua língua

Aquele que escreve nos teus braços

Nas tuas nádegas

Aquele que finge ser a tua sombra

Que lê os teus livros

Que come a palha do teu colchão

Aquele que voa

Aquele que tomba no chão

Aquele que mija

Que porcamente cospe no chão.

 

Aquele filho da puta

Que te ameaça com palavras

Que em vez de te atirar com pedras…

Atira-te com a tabuleta que brinca no portão

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que finge ser o teu fiel cão

Que deixou de ser cão

(DIZEM: dizem que agora é um estorninho com asas de nylon)

Aquele que cospe

Que mija

No chão.

 

Aquele que quer ser como tu

Um (tu) diferente

Que em vez de ser CÃO

É… Cãozão

É boi de primeira

Alface de lábios pincelados de vergonha

Aquele que morre

Aquele que inventa o cão

Na voz de cão

O cão que escreve

O cão que fala

Que ladra

Ladra

Ladra

Cão. Cabrão. Colhão. Chão.

 

Toca o telefone

É do trezentos e quatro

Terceiro direito

Uma janela virada para o sol

Outra janela virada para a morgue

Um cão.

Cão.

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que se alicerça em ti

Que te come

E enquanto o poeta não MORDE

E em cada filho da puta

Daquele que morde

Deixa de morder…

E

 

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

 

 

 

Alijó, 30/03/2023

Francisco

O último cigarro de prata

 Peço ao meu último cigarro

(banhado a prata e com as insígnias: L&F)

Peço ao meu último cigarro,

Travestido de bala,

Que antes de perfurar o meu esqueleto de sono,

Faça com que a madrugada se pincele de noite,

Escura,

Fria,

Cinzenta,

E muito fria

E muito cinzenta e muito escura...

E muito fria.

 

Peço ao meu último cigarro

(após Deus ter desertado da Armada)

Que me traga os fósforos,

As palavras das cinzas dos livros entre névoas de medo

E outras tantas palavras,

Palavras de merda,

Palavras de Deus,

Homem integro,

Homem da farra…

Palavras

Na palavra.

 

Se nascer menino…

Será trapezista,

Se nascer menina…

Será Deusa das palavras & Afins da madrugada, Limitada…

Com sede na Rua do Alegrim,

Trezentos e quatro…

Mil e quinhentos – trezentos e dois…

Lisboa.

 

 

 

 

Alijó, 30/03/2023

Francisco