Lágrimas?
Rega as plantas
Desfaz a barba
Veste o melhor
fato
E come sempre a
sopa
Fontinha
Sou um artista de merda
E não desfazendo em
ninguém
Um poeta atolado na merda
Fui um filho de merda
Um pai de merda
E sou um grande filho da
puta de merda
Para os meus irmãos
No entanto
Sou um gajo muito feliz
De merda
Fui um amante de merda
Escrevedor de cartas nas
horas vagas
Fui picheleiro
Ainda não fui barbeiro
Mas talvez um dia
Seja um barbeiro de merda
Como fui um pedreiro
De merda
Conceituado
Diplomado
Fui cantoneiro
Fui ferrador
Fui motorista de
madrugadas
Todas elas
Madrugadas de merda
Fui puta
Fui controle remoto
Televisão
Caixote de mercadorias
Fui tudo em merda
Da merda da minha vida
Fui mercadoria em transacção
Maconha
Pão
E sou agora este alegre
caixão
Francisco Luís Fontinha
23/10/2022
Este beijo
Qualquer dia em demanda
Somos nada
Palavras
E dos lábios em saudade
Este beijo
Perdido na montanha
Que no corpo semeia
O sémen de amar
Este beijo
Menina perdida no mar
Ou se ergue de mim
Ou se suicida em mim
E coitadinha…
Assim vai morrer
Morrer nos meus lábios
Alijó, 23/10/2022
Francisco Luís Fontinha
A última porta da noite. Escondo os olhos na primeira gaveta da mesinha-de-cabeceira, lá dentro, alguns pertences dos meus pais, cartões de identidade, recordações que aos poucos vou deitando fora de mim, pertences esses que vão ficar esquecidos como um dia ficarão esquecidos todos os meus pertences; numa gaveta de uma distante mesinha-de-cabeceira.
Às vezes sinto-me um
cacilheiro desgovernado ou um machimbombo louco em andamento pelas ruas de uma
cidade que nunca existiu, que eu nunca vi, que eu não conheço, e vestido de
cacilheiro faço-me à vida, saio de casa, pego no terceiro ou quarto cigarro da
manhã, encerro a última porta da noite, e depois de andar em círculos pelo rio,
estaciono junto ao café e tomo o primeiro café do dia e fumo o quinto cigarro
do dia e chego á triste conclusão que preferia ser um louco machimbombo
conduzido por um louco, não em círculos pelo rio, mas em contramão pelas ruas
de uma cidade que eu não conheço, nunca conheci e não quero conhecer.
O mar está revolto, meu
amor e, não adianta esconder-me dessa cidade que não conheço, cidade maldita
que me viu nascer e me abandonou, cidade que se ergue em mim todas as noite e
que teimo em não regressar; sabes, meu amor, tenho medo dos machimbombos e dos
loucos que passeiam os machimbombos por esta cidade em chamas, onde ao longe,
sinto o cheiro dos meus quadros, metade em cinza, outra metade, embalsamados
como se embalsamam os corpos das flores da Primavera.
E nesta cidade que eu não
conheço, que nunca conheci, observo o miúdo que está sentado no portão de
entrada de um quintal recheado de mangueiras e que às vezes me questiono que
quintal será este, a quem pertenceria este quintal, que miúdo é este que teima
em olhar as nuvens e espera pacientemente o regresso do avô Domingos, que pela
mão passeia um velho machimbombo pela cidade, cidade que não conheço, cidade
que nunca vi, cidade que não quero conhecer.
Mas meu amor, acabamos
sempre por desconhecer as cidades. Transportamos ruas, ruelas, casas, casinhas,
flores, cacilheiros, putas e marinheiros, mas nunca a saudade.
E da primeira gaveta da
mesinha-de-cabeceira, após encerrar a última porta da noite, vem a mim o cheiro
intenso da terra queimada, do cheiro do capim húmido, da tua agonia enquanto a
morte não te levava, dos constantes pedidos a Deus para que através de um
qualquer milagre te salvasse, mas tal como a cidade que me abandonou, que eu
nunca conheci, que ainda hoje não conheço, também ele, também eu, sentamo-nos
junto ao rio a olhar os machimbombos a desenhar círculos de sémen sobre os
temidos lençóis que sobejaram da noite, que tal como a cidade, não me pertence
e nunca me pertencerá.
Nunca serei dono da noite
porque a noite é escura, porque a noite é fria, porque a noite sabe a morte e a
uma cidade que se afunda nos três pilares em aço das pequenas mãos do silêncio;
e hoje, queria ser como tu.
A última porta da noite.
E este machimbombo
acorda-me durante a noite, pega na minha mão e leva-me em pequenos passeios por
esta cidade que eu não conheço, que eu nunca conheci e que hoje sinto medo de
recordar. Acordas-me sem perceberes que nunca adormeci antes de encerrar a
última porta da noite, sem perceberes que dentro de mim habitam cacilheiros em
papel, machimbombos de porcelana e flores de Inverno.
Que o fino fio de nylon
que puxava o machimbombo hoje trago-o na algibeira conjuntamente com os
cigarros, as chaves de casa e o endereço da terceira gaveta da tua
mesinha-de-cabeceira. E em caso de endereço insuficiente, é favor devolver ao
remetente…
Mas qual remetente?
Se esta cidade não
existe, se esta cidade nunca existiu, se esta cidade é apenas uma velha
fotografia que não sei porquê… está na gaveta da mesinha-de-cabeceira, e é
pertence dos pertences deles.
Estes barcos chateiam-me.
Estes barcos são agora sucata e vómitos de saudade, depois percebo que o
silêncio é o construtor da última porta da noite que todos os dias encerro e
que a todos os dias se abre; e que dos olhos acordaram as preguiçosas
madrugadas onde uma janela se abre e que nunca mais se encerrará como se
encerra a última porta da noite.
Desenho as estrelas nos
teus olhos. Desenho as madrugadas nos teus lábios, e quando regressam a mim os
machimbombos que deixei naquela cidade que nunca conheci e ainda hoje não
conheço, percebo que sou um pedaço de aço nas mãos de um metalúrgico que não se
cansa de escrever na escória do meu silêncio; aqui me perco onde guardo os teus
lábios.
E há sempre um remetente
que nos espera, numa cidade que não conhecemos, numa cidade que inventamos para
adormecer durante a noite e encerrar a última porta desta; e ele inventou o
sono.
E das mangueiras do meu
quintal apenas ficaram os teus braços; e as mãos com que afagavas o meu rosto…
E a última porta da
noite.
Alijó, 23/10/2022
Francisco Luís Fontinha
Sento-me nesta cadeira rabugenta
E espero que a Nortada
Me leve,
Qualquer lugar, qualquer
dia,
Todos os dias,
Sento-me nesta cadeira
rabugenta
E acredito que das minhas
palavras
Nascerão as primeiras chuvas
da manhã,
Um poema
Ou uma simples lágrima.
Sento-me
E percebo que esta
cadeira não me pertence,
Que esta cadeira em
marfim
É a madrugada disfarçada
de mendigo,
O mesmo mendigo que me
visita todas as noites
E me pede cigarros
E me pede azeite para a
candeia das almas.
Sento-me nesta cadeira
rabugenta
Acreditando que a cidade
arde
Na algibeira de um magala
em apuros,
De espingarda nos lábios.
E desta cadeira rabugenta
Oiço os gemidos ossos
Sobre o peito da alvorada…
Quando já regressaram a
mim todas as tempestades do sémen enforcado.
Alijó, 22/10/2022
Francisco Luís Fontinha