segunda-feira, 24 de outubro de 2022

 

Lágrimas?

Rega as plantas

Desfaz a barba

Veste o melhor fato

E come sempre a sopa

 

 

Fontinha

 

Sou um gajo aprumadinho

Não como a sopa

Não sei as cores

Sou um gajo tão mal-encarado

Que até as flores

Fogem das minhas mãos

 

 

Fontinha

domingo, 23 de outubro de 2022

Um gajo muito feliz

 Sou um artista de merda

E não desfazendo em ninguém

Um poeta atolado na merda

Fui um filho de merda

Um pai de merda

 

E sou um grande filho da puta de merda

Para os meus irmãos

No entanto

Sou um gajo muito feliz

De merda

 

Fui um amante de merda

Escrevedor de cartas nas horas vagas

Fui picheleiro

Ainda não fui barbeiro

Mas talvez um dia

 

Seja um barbeiro de merda

Como fui um pedreiro

De merda

Conceituado

Diplomado

 

Fui cantoneiro

Fui ferrador

Fui motorista de madrugadas

Todas elas

Madrugadas de merda

 

Fui puta

Fui controle remoto

Televisão

Caixote de mercadorias

Fui tudo em merda

 

Da merda da minha vida

Fui mercadoria em transacção

Maconha

Pão

E sou agora este alegre caixão

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

23/10/2022

Sémen de amar

 Este beijo

Qualquer dia em demanda

Somos nada

Palavras

E dos lábios em saudade

Este beijo

Perdido na montanha

Que no corpo semeia

O sémen de amar

Este beijo

Menina perdida no mar

Ou se ergue de mim

Ou se suicida em mim

E coitadinha…

Assim vai morrer

Morrer nos meus lábios

 

 

Alijó, 23/10/2022

Francisco Luís Fontinha

 O amor

E uma carta sem remetente

Nos beijos

Quando os lábios são montanhas

E o abraço

Que procuras em mim

São cansaços

Instantes de ti

 

 

 

Alijó, 23/10/2022

Francisco Luís Fontinha

A última porta da noite

 A última porta da noite. Escondo os olhos na primeira gaveta da mesinha-de-cabeceira, lá dentro, alguns pertences dos meus pais, cartões de identidade, recordações que aos poucos vou deitando fora de mim, pertences esses que vão ficar esquecidos como um dia ficarão esquecidos todos os meus pertences; numa gaveta de uma distante mesinha-de-cabeceira.

Às vezes sinto-me um cacilheiro desgovernado ou um machimbombo louco em andamento pelas ruas de uma cidade que nunca existiu, que eu nunca vi, que eu não conheço, e vestido de cacilheiro faço-me à vida, saio de casa, pego no terceiro ou quarto cigarro da manhã, encerro a última porta da noite, e depois de andar em círculos pelo rio, estaciono junto ao café e tomo o primeiro café do dia e fumo o quinto cigarro do dia e chego á triste conclusão que preferia ser um louco machimbombo conduzido por um louco, não em círculos pelo rio, mas em contramão pelas ruas de uma cidade que eu não conheço, nunca conheci e não quero conhecer.

O mar está revolto, meu amor e, não adianta esconder-me dessa cidade que não conheço, cidade maldita que me viu nascer e me abandonou, cidade que se ergue em mim todas as noite e que teimo em não regressar; sabes, meu amor, tenho medo dos machimbombos e dos loucos que passeiam os machimbombos por esta cidade em chamas, onde ao longe, sinto o cheiro dos meus quadros, metade em cinza, outra metade, embalsamados como se embalsamam os corpos das flores da Primavera.

E nesta cidade que eu não conheço, que nunca conheci, observo o miúdo que está sentado no portão de entrada de um quintal recheado de mangueiras e que às vezes me questiono que quintal será este, a quem pertenceria este quintal, que miúdo é este que teima em olhar as nuvens e espera pacientemente o regresso do avô Domingos, que pela mão passeia um velho machimbombo pela cidade, cidade que não conheço, cidade que nunca vi, cidade que não quero conhecer.

Mas meu amor, acabamos sempre por desconhecer as cidades. Transportamos ruas, ruelas, casas, casinhas, flores, cacilheiros, putas e marinheiros, mas nunca a saudade.

E da primeira gaveta da mesinha-de-cabeceira, após encerrar a última porta da noite, vem a mim o cheiro intenso da terra queimada, do cheiro do capim húmido, da tua agonia enquanto a morte não te levava, dos constantes pedidos a Deus para que através de um qualquer milagre te salvasse, mas tal como a cidade que me abandonou, que eu nunca conheci, que ainda hoje não conheço, também ele, também eu, sentamo-nos junto ao rio a olhar os machimbombos a desenhar círculos de sémen sobre os temidos lençóis que sobejaram da noite, que tal como a cidade, não me pertence e nunca me pertencerá.

Nunca serei dono da noite porque a noite é escura, porque a noite é fria, porque a noite sabe a morte e a uma cidade que se afunda nos três pilares em aço das pequenas mãos do silêncio; e hoje, queria ser como tu.

A última porta da noite.

E este machimbombo acorda-me durante a noite, pega na minha mão e leva-me em pequenos passeios por esta cidade que eu não conheço, que eu nunca conheci e que hoje sinto medo de recordar. Acordas-me sem perceberes que nunca adormeci antes de encerrar a última porta da noite, sem perceberes que dentro de mim habitam cacilheiros em papel, machimbombos de porcelana e flores de Inverno.

Que o fino fio de nylon que puxava o machimbombo hoje trago-o na algibeira conjuntamente com os cigarros, as chaves de casa e o endereço da terceira gaveta da tua mesinha-de-cabeceira. E em caso de endereço insuficiente, é favor devolver ao remetente…

Mas qual remetente?

Se esta cidade não existe, se esta cidade nunca existiu, se esta cidade é apenas uma velha fotografia que não sei porquê… está na gaveta da mesinha-de-cabeceira, e é pertence dos pertences deles.

Estes barcos chateiam-me. Estes barcos são agora sucata e vómitos de saudade, depois percebo que o silêncio é o construtor da última porta da noite que todos os dias encerro e que a todos os dias se abre; e que dos olhos acordaram as preguiçosas madrugadas onde uma janela se abre e que nunca mais se encerrará como se encerra a última porta da noite.

Desenho as estrelas nos teus olhos. Desenho as madrugadas nos teus lábios, e quando regressam a mim os machimbombos que deixei naquela cidade que nunca conheci e ainda hoje não conheço, percebo que sou um pedaço de aço nas mãos de um metalúrgico que não se cansa de escrever na escória do meu silêncio; aqui me perco onde guardo os teus lábios.

E há sempre um remetente que nos espera, numa cidade que não conhecemos, numa cidade que inventamos para adormecer durante a noite e encerrar a última porta desta; e ele inventou o sono.

E das mangueiras do meu quintal apenas ficaram os teus braços; e as mãos com que afagavas o meu rosto…

E a última porta da noite.

 

 

Alijó, 23/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 22 de outubro de 2022

O sémen enforcado

 Sento-me nesta cadeira rabugenta

E espero que a Nortada

Me leve,

Qualquer lugar, qualquer dia,

Todos os dias,

 

Sento-me nesta cadeira rabugenta

E acredito que das minhas palavras

Nascerão as primeiras chuvas da manhã,

Um poema

Ou uma simples lágrima.

 

Sento-me

E percebo que esta cadeira não me pertence,

Que esta cadeira em marfim

É a madrugada disfarçada de mendigo,

O mesmo mendigo que me visita todas as noites

 

E me pede cigarros

E me pede azeite para a candeia das almas.

Sento-me nesta cadeira rabugenta

Acreditando que a cidade arde

Na algibeira de um magala em apuros,

 

De espingarda nos lábios.

E desta cadeira rabugenta

Oiço os gemidos ossos

Sobre o peito da alvorada…

Quando já regressaram a mim todas as tempestades do sémen enforcado.

 

 

 

Alijó, 22/10/2022

Francisco Luís Fontinha