Obviamente não foi
embora, e três dias depois, quase noite, encerrou-se dentro de uma
caixa de vidro, puxou o cortinado, acendeu o cigarro, e sem hesitar,
entre coices e telas em acrílico que tinha acabado de destruir e
deitado fora, finou-se, morreu, e só teve tempo de cruzar os braços
em abraços, e
sem hesitar,
desapareceu entre as
sombras abstractas que a morte inventa no tecto das casas com sótão,
escadas em madeira, e janelas sobre as outras casas, também elas, em
madeira, e luzes fanadas a outras casas, a água desviada
silenciosamente da casa do vizinho, e com duas galinhas, e com alguns
coelhos, e poucos
sem hesitar,
galos de crista
encarnada, os cornos do peru, as hastes mestras das cabras, as
ovelhas em gemidos, e logo temos queijo fresco e legumes, e sandálias
de couro com calções de chita, e sem hesitar
obviamente não foi
embora, eu
sem hesitar,
desapareci entre as
sombras abstractas que a morte inventa, e poucos
porcos de crista
encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em
fibra de vidro, e poucos
sem hesitar,
eu
sem hesitar,
desapareci entre as
sombras abstractas que a morte inventa, e poucos ou nenhuns pássaros
sobre o meu cadáver acetinado, as unhas de gel que a menina do
rés-do-chão desenhou nas minhas mãos por vinte aéreos, poucos
eu
sem hesitar,
queria ser como tu,
terça-feira disseste-me que não, e agora dizes-me que sim, que há
pássaros no quintal à minha espera, e que depois de se extinguirem
todas as lâmpadas das mesas de vodka, tu puxas de um cigarro,
acendes o cortinado, e em coices desapareces nas telas em acrílico
que brincavam na torre de controle do aeroporto da Chã, a pista
longínqua, o último grito da aviação comercial, o pássaro
Galileu em poucas palavras faz-se à pista, e há pista senhores
excelentíssimos passageiros, há pista, os carrinhos de choque
eu
sem hesitar,
aos saltos e pulos e voos
pegajosos e nojentos para não acordar a vizinhança pela manhã
quando era domingo, e tu, hoje, terça-feira disseste-me que não, e
agora vejo-te aos círculos na cama com lençóis de mar, há pista,
poisas os pezinhos sobre a almofada, abres em noite de estrelas as
asas dos desejos nocturnos, rolas silenciosamente pela pista, há
pista, há pista senhores excelentíssimos senhores, à pista
encostas as mamas e adquires estabilidade, da torre dizem-te
sem hesitar menina, vento
a dez nós, sem hesitar, endireitar o nariz e os lábios, e não
esqueça o púbis cansado e aerodinâmico das canções de Natal,
vens bem, pensava eu,
enquanto te observava a percorrer a cama pela manhã, vens bem, e
aterravas nos meus frágeis braços de alumínio,
obrigado senhores
excelentíssimos passageiros,
aos seus destinos,
sem hesitar,
caminhava pelas ruas,
puxava do cortinado e acendia o cigarro, sentava-me sobre os fardos
de palha que todas as manhãs acordavam à porta do tio Joaquim, há
porta, janelas, há janelas nesta casa travestida de sótão?
eu
sem hesitar,
mentia-te, e dizia-te que
a pocilga onde vivíamos era um sótão com escadas de madeira, e
janelas sobre as outras casas, também elas, em madeira, e luzes
fanadas a outras casas, a água desviada silenciosamente da casa do
vizinho, e com duas galinhas, e com alguns coelhos, e poucos
sem hesitar,
porcos de crista
encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em
fibra de vidro, e poucos,
que tu acreditavas.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó