segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Das noites os sargaços adormecidos

Sou um desgraçado
desengraçado
uma árvore apoteótica
que alça a pata para mijar contra a parede dos sonhos

não vou falar do amor
e odeio a poesia
nem tão pouco irei escrever à mulher do rés-do-chão esquerdo
que finge enviar telegramas a Deus
quando este dorme profundamente nos alicerces da morte

a parvoíce dos pássaros com bilhete para a viagem até ao infinito
check-in sobre a copa das árvores
que de longe observam a loucura dos barcos
e dos cristais de iodo

lábios de sede perdidos nas páginas de um jornal
que embrulham as pernas do vagabundo
(Sou um desgraçado
desengraçado
uma árvore apoteótica
que alça a pata para mijar contra a parede dos sonhos)
com a dentadura de marfim
e os olhos de vidro
made ln-China
das noites os sargaços adormecidos

odeio as borboletas e as abelhas que enviam telegramas para Deus
e odeio a poesia
fingida de amor
nas janelas da noite

(odeio o rés-do-chão esquerdo).

domingo, 19 de agosto de 2012

Mulher de prata

A mulher de prata
vive apaixonadamente pelo homem de chapa
com coração de xisto

eu
felizmente
não sou de prata
eu
felizmente
não sou de chapa

eu felizmente fui construído de solidão
que mata
e destrói os carris em direcção ao Rossio
como um veleiro de prata
com o coração de chapa
à deriva no rio

e a mulher de prata
com vergonha do homem de chapa

vive

vive entre as portas de bronze
que a noite tece no tear da dor
como a flor
no final de cada poema de amor

vive

a mulher de prata
com vergonha do homem de chapa

no corredor da morte.

sábado, 18 de agosto de 2012

Quarto escuro

Quarto escuro sem janela para o amor
quarta-feira
os cortinados da solidão vão para a lavandaria
e o néon suspenso no tecto adormeceu há três dias
escuro
provavelmente morreu de overdose
palavras murmuradas nas bocas locas de esperma
das putas em ziguezagues
que atravessam as ruas invisíveis da miséria
quarta-feira

o amor inventado nas janelas do quarto escuro
escuro
os meus olhos
quando acorda em mim o silêncio do orvalho

escuro

o meu coração sem flores
escuro
o meu coração acorrentado dentro do quarto escuro
e quarta-feira
eu
eu e os cortinados vamos para a lavandaria
eu
quarta-feira
deitado no quarto escuro à espera que cessem as sílabas no canelho
onde
onde dentro da noite se esconde a puta dos ziguezagues
escuro a quarta-feira dentro do quarto com cortinados de solidão...

(poema não revisto)

Insistências da noite

A noite insiste
no fracasso das minhas mãos sobre o teu rosto
fico sem perceber se és real
ou se foste esculpida num pedaço de marfim
que ficou esquecido num musseque em Luanda
olho-te
e sinto que existe em ti um jardim abandonado
com todas as flores e todos os pássaros vestidos de fantasma
e que se passeiam nas noites de ninguém
a noite insiste
que dos teus lábios
irão nascer narcisos com os olhos recheados de lágrimas

no fracasso das minhas mãos.

Três poemas de luz

Três felizes personagens de porcelana
dentro de um livro que voa sobre a noite cintilante dos cordões de azeite
à porta das casas sem cobertura
três felizes vozes
três poemas de luz
dentro de uma pirâmide colorida com lábios de sonho
e pedaços de mel
e pedaços de noite ausente de estrelas
que as três felizes personagens comeram ao pequeno-almoço
das vozes
três poemas de luz
ao cansaço do meu corpo antes de descer à sepultura de areia

cobre-me o mar
e todo o meu corpo desaparece entre os corações de azul-amêndoa
que a noite constrói
e nas tardes de tempestade...
nas tardes de tempestade semeia nas minhas mãos ortodoxas
as bolachas da insónia

Três felizes personagens de porcelana
dentro de um livro
três felizes vozes
três poemas de luz

e cobre-me o mar.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A preto e branco nas equações do amor...

Uma mulher de vidro poisou nas minhas palavras
sobre a secretária de madeira
invento-lhe história com fotografias a preto e branco
que trouxe de Angola
os barcos ainda vivem
e navegam entre paredes de limão
e o fumo dos cachimbos ensonados junto aos livros desassossegados
uma mulher

no meu álbum de fotografias
uma mulher que hoje é uma menina
e ontem
e ontem galopava no cavalo branco com sílabas de cetim

perdi-lhes o nome
olho-as e quase desconheço os lugares
e os cheiros
e todos os nomes do caderno preto

vejo o mar
e o mar parece um amontado de ruínas de cimento
vejo as árvores
e todas as árvores mortas nas janelas dos pássaros sem cabeça
perdidos no meu álbum de fotografias
vejo o mar
e todos os barcos são pedaços de madeira
dentro dos dias ensanguentados de insónia
e princípios de solidão
os calafrios da morte
a preto e branco
nas equações do amor...