foto: A&M ART and Photos
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Não sofro, não choro, sou uma pedra perdida sobre
o muro que separa a noite, do dia, faço parte da engrenagens
fronteiriça, sou o arame-farpado, as ripas de madeira onde se
esconde o sol, o teu sol, meu querido, sou a lâmina de aço
inoxidável, pronta a decepar as flores e as árvores, os peixes e o
teu mar, não sofro, não choro, às vezes, esqueço-me, dizem-me
Deve ser da idade,
Que tenho coração, poiso a mão no teu peito e
nenhum batimento, silêncio absoluto, como quando se liga o
interruptor de um candeeiro, e a luz, que entre o ondulatório e a
corpuscular, obviamente, demito-o
(grande General)
Prefiro a onda-partícula, obviamente
(demito-o)
E não chora ele, não sofre, não sonha e não ama,
ele é um fantasmas constituído por água, carbono e restos de
tabaco, e nunca
Obviamente,
Adormeceu nas vegetações esquecidas dos
calendários suspensos num prego enferrujado na parede da cozinha,
ele não percebe que ela, a janela virada para o quintal, deixou de
abri quando a tragédia entrou naquela casa
(qual tragédia)
Grega?
Obviamente... (demito-o) como todos os incompetentes
o deviam ser; demitidos, mas existe o medo, mas ele esconde-se quando
regressa a noite do outro lado do rio, do local onde está sentado
ouvem-se os automóveis esfomeados e apressadamente entram no
esófago, atravessam em marcha lenta o estômago, e entre curvas e
contracurvas, percorrem o intestino a passo de caracol, que porcaria
de vida, oiço-a
(obviamente, demito-o)
Oiço-a quando procura as minhas mãos, e o trânsito
entupido dentro de mim, até que a cidade se abre aos transeuntes do
outro lado do rio, e alguns automóveis esperam, desesperam, até que
a rua
(Não sofro, não choro, sou uma pedra perdida sobre
o muro que separa a noite, do dia, faço parte da engrenagens
fronteiriça, sou o arame-farpado, as ripas de madeira onde se
esconde o sol, o teu sol, meu querido, sou a lâmina de aço
inoxidável, pronta a decepar as flores e as árvores, os peixes e o
teu mar, não sofro, não choro, às vezes, esqueço-me, dizem-me
Deve ser da idade),
Mergulha, a rua, todas as ruas, mergulham no
silêncio dos peixes voadores, e claro, nunca
(tens a certeza?)
Nunca, nunca, nunca chorei, sofri, sonhei ou
pretendi esconder as lágrimas que pingam dos telhados quando vem a
tempestade, e me leva a solidão a que me abraço antes de adormecer,
nunca, nunca percebi de que cor era o meu coração, e nunca, e nunca
ela aprendeu a sentir-lhe os pequenos batimentos, os ritmos cardíacos
das alfaces, e nunca
(claro que o demito, obviamente)
E nunca adormeci abraçado a uma almofada com
bonequinhos bordados pela minha mãe, mas recordo-me de ver a minha
irmã com um pijama e no peito, um coração, bordado pelas mãos da
nossa mãe, hoje não sei onde se encontram elas, se vivas, se
mortas, ou se apenas dormem sobre o muro onde me sento, deito, e
finjo chorar, porque não choro, nunca chorei, nunca sofri, e dor...,
só me recordo da dor física, porque o coração é uma máquina,
propriamente, uma bomba mecânica, com válvulas, com tubos, com
engrenagens, e apenas bombeia sangue
Não inventa palavras, não guarda imagens, não
fabrica sonhos, só... bate, bate, bombeia, enquanto o tempo-espaço
mergulham num campo de barracas, uma feira de antiguidades,
protegidas pelos silêncios do rio, e quando eu acreditava que o
trânsito tinha cessado,
(as saudades dos triciclos de madeira)
Não cessaram nunca, e apenas bombeia sangue até
que um dia cessam os cortinados de aranha da noite despedida pela
paixão, e também nunca me apaixonei, como as pedras como eu que
vivem sobre os muros dos campos, brincam com os sorrisos do rio,
brincam com os olhos das pontes metálicas, ou de pré-esforço, e de
vez em quando, vem um pássaro de nome saudade, poisa sobre mim e
segreda-me
(obviamente, demito-o)
E hoje, dizem que sim, e hoje, dizem que sim.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha