sábado, 23 de fevereiro de 2013

Inventaste-me o sono das noites de água

Inventas o espelho, e o caixilho onde dorme o espelho, inventas o prego, onde penduras o espelho, e a parede, inventada por ti, inventas a sombra que escurece o espelho, onde te olhas, onde fumas, o cigarro inventado, pela secura do silêncio agachado no pavimento ósseo com ripas de fumo e pedacinhos de suor da tua pele perfumada, a água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada, perdem-se os sossegados momentos de literatura dentro da esplanada vestida com as roupas por ti, inventadas
Todos Todas Adivinhos,
Dos murmurados alpendres onde me arrumavas os braços e as pernas depois de me usares,
Acordavas cedo, puxavas as cordas da noite e começava a clarear o dia, inventavas
Descobri tardiamente
Que inventavas os dias só para mim, como o jardineiro quando sente que uma fina pétala se desprende do esqueleto da Cinderela e também ele, inventa as espinhas que sobejaram dos peixes de madeira que a filha fez numa das aulas de Trabalhos Manuais, ele aprendeu a pregar botões e a fazer uma simples instalação eléctrica, e com alguma picadelas nos dedos de areia
Descobri tardiamente que não tinha jeito para invenções,
De areia como as línguas de fogo que começaram a descer dos telhados de vidro das casas dos mais enlouquecidos pasteis de nata, do Rossio até Belém, aproveitando o vento e o sabor a morango do rio, a cidade ia ficando-se
Como tu antes de inventares esse maldito espelho onde te olhas ao acordar, a janela do dia de ontem, onde vês o restaurante encerrado por falta de clientes, as cadeiras vazias onde se sentavam as galdérias noites e candeeiros a petróleo que a cidade rejeitava, ouvíamos um banco de jardim a passear junto à Torre de Belém, fumava cigarros de enrolar, tinha na cabeça uma pano vermelho, e era alimentado por painéis lunares, e
Saltitava-lhe da voz
Todos Todas Adivinhos,
A rouquidão do prazer quando os mamilos da Cinderela, colorida com os lápis de cor da miúda, a filha da Rosalinda, chegava da escola, e poisava a mochila no pátio de gelo em frente ao pindérico jardim onde brincava um casebre empobrecido, delata, e um olho em xisto, E
E
Saltitavam-lhe da voz as laranjas podres e os limões sem as palavras que tu
(Inventas no espelho, e no caixilho onde dorme o espelho, inventas no prego, onde penduras o espelho, e na parede, inventada por ti, inventas na sombra que escurece no espelho, onde te olhas, onde fumas, no cigarro inventado, pela secura do silêncio agachado no pavimento ósseo com ripas de fumo e pedacinhos de suor da tua pele perfumada, na água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada, perdem-se nos sossegados momentos de literatura dentro da esplanada vestida como as roupas por ti, inventadas
Todos Todas Adivinhos),
Inventavas os diários de prata, de uma cigarreira simples, modesta, honesta, uniformemente acelerada, como o movimento dos teus olhos depois de fazeres O Amor,
Esquadro, Régua, Lápis e Borracha, Uma folha eterna de papel
E o dito O Amor deixa as marcas de sujidade nas nuvens dos céus tempestuosos da cidade envergonhada, a casa
Treme, o teu espelho
Recordas-te? Aquele, o inventado por ti...
Esboça pequenos círculos de Ilhas embebidas em vulcões e andorinhas selvagens, e vêem-se os distantes rochedos onde deixavas as minhas cartas, e depois, de mastigares todas as minhas palavras, inventavas-me entre os pilares de açúcar e o medo das noites com lâmpadas quadradas nas paredes de vidro dos tectos falsos das gargantas das mulheres apaixonadas, pelo vento entravam todas as manchas de óleo e os pedaços de saliva, que o mar, do outro lado da cidade, cuspia contra os táxis e os barquinhos de papel com desenhos de flores e casinhas castanhas com uma árvore negra, hoje, logo hoje, perdi as palavras dos teus cabelos
Castanhos,
Negros,
Azuis quando desces à fundo do Oceano,
(de suor da tua pele perfumada, na água inventada, inventas com as tuas mãos as calibradas pálpebras (de) (da) madrugada), e vinte e oito anos depois, a morte, a morte trouxe-lhe o sossego, a morte trouxe-lhe a paz, a morte trouxe-lhe o encantado quarto enfeitado com verdes panos e lilases veludos que a mesma morte tinha comprado em São Tomé e Príncipe, e descansasse na Paz dos Anjos,
Como qualquer espelho inventado tem direito.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Manhãs sem rio

Um compartimento exíguo, aquilo que me define, o que sou, milímetros quadrados de nada, sem janelas, portas ou madrugada,
Do meu soalho, com algumas ranhuras, vê-se o sol, e facilmente se percebe que eu, ou seja, o meu compartimento está invertido, rodado cento e oitenta graus, talvez durante a noite, talvez quando acordou o dia, talvez
As portas sem madrugada,
Ou
Corações sem nada, simples, mistos, entre fios e hastes helicoidais, animais de estimação e um cão, com voz rouca, sofrendo, as mentiras de uma infinita palavra, começada por hoje e terminada em...
Nada,
Ou,
Do meu pobre soalho vejo além do sol, o rio das lágrimas doiradas, vejo também as desorientadas luzes dos dias que construíste sem a minha autorização, rodeaste-me de mentiras e falsidades, de equações do terceiro grau, as incógnitas desapareciam entre o papel quadriculado e o lápis de desenho, e percebi que não tinha jeito para ser engenheiro, nem letrado, nasci para ser um ser desprovido de tudo, eis a única felicidade de mim, não ter, não ser
Nada, madrugada, corações sem nada, sobre os pinheiros iluminados pelo perfume doentio das manhãs sem rio, e o cio?
O que tem o cio?
Tem frio?
Ou, também ele, como eu, um ser desorganizado, indiferente ao perfume com sabor a nafta dos barcos de papel quando atravessam a estrada ziguezagueada das loucas locomotivas que os pássaros deixam cair sobre as cabeças empastadas de laca
E às vezes
Sinto-os,
Sobre mim,
Ou
Também eles, como eu, um ser desorganizado e sem destino à vista, com uma previsão de sucesso de zero vírgula zero zero um por cento, fantástico, fascinante, e descubro que é mais fácil levar com um parafuso de um satélite na cabeça do que acertar na combinação correcta do euro milhões, sobre mim, tudo bem, análises normais, radiografias normais, e tirando a insónia dos teus olhos sempre suspensos no tecto do meu quarto, eu diria que
Sou um ser humano normal, feliz, sucessivamente a tropeçar nas pedras invisíveis que as palavras arrumam dentro dos caixotes de lixo semeados pelas ruas estreitas e largas da cidade com garganta de vidro e um simples olho de diamante lapidado pelas mãos de uma linda e nobre flor,
Estupidamente
O teu Príncipe imperfeito, sem jeito, nem afeito, como os camelos encalhados nas ruelas do deserto, uso um capacete de fibra de vidro para me proteger das possíveis agressões das gaivotas revoltadas com as minhas palavras,
(por isto da escrita nem sempre agradamos a todos, e tenho recebido algumas queixas, poucas, de gaivotas, alguns barcos de recreio e de um livro que vive atormentando-me, veja-se que ele quer passar à frente da lista de espera, quer isto dizer, nada, que a madrugada, existe para me obrigar a sair da cama, e que a noite, existe, para me obrigar a olhar os olhos suspensos da flor linda que alguém inventou para mim),
Gostava de ti e nunca o disse, por algumas flores são como os versos entrelaçados nas rimas com preguiça, enrolam-se nas ervas junto à eira de Carvalhais, e depois, depois descem até conseguirem rodar o meu exíguo compartimento cento e oitenta graus, e através do meu soalho,
O sol é uma miragem, e através dos buracos do soalho consigo com a minha mão acariciar o mar, e as algas com sorriso de amar, porque às vezes, o amor
(Não é só fodido – livro de Miguel Esteves Cardoso)
O amor pode causar danos irreversíveis no seu coração de areia, seu, meu, nosso, o deles,
De todos os corações,
De todas as cores, de papel, plástico ou vinil, todos
Eles,
Encalhados nas profundezas das aranhas com sete patas de alumínio e com asas de casca de amêndoa, dinamicamente nas algibeiras das equações quando as calças de cetim se rompem com a força do vento, depois vem a estática, e as equações parecem beijos moribundos e desenganados pelas ardósias das tardes junto à lareira, e assim
Vai andando sobre rodas, o amor e o desejo de amar,
Como o relógio de bolso, o meu, que me espera sentado na prateleira da minha estante na companhia de alguns livros, cachimbos, e meninas de sorriso loiro,
E confesso
Não me apetece pegar-lhe.

(não revisto, ficção)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A paixão dos peixes


Procuro-te sabendo que não existes
e que pertences às palavras mórbidas
que as noites de Inverno inventam
e fazem-nos sonhar
que amamos a chuva
e o luar,

Procuro-te entre os muros pintados de branco
com letras negras
e flores amarelas
procuro-te sem perceber porque te escondes de mim
e escondes as cartas abstractas que deixamos adormecer na saudade
dos pinheiros mansos do recreio da escola,

Procuro-te sabendo que te escondes das ditas conversas de café
quando uma simples mesa com pernas de madeira
tropeça nas sílabas divinas que o teu corpo transpira
e lança contra as lindas e amargas moscas de incenso...
as varandas do eterno amor desejado
e perdes-te de mim sem perceberes os destinos adormecidos do sangue,

A carne apodrece
e os ossos do amor nas tuas mãos envergonhadas
que Deus deixou para mim à porta do abismo sonho
e uma dor apodera-se do meu peito submerso na paixão dos peixes
há pontes entre nós incompletas defeituosas e ausentes
como todas as histórias,

Como todos os sinceros morcegos das noites quentes
caem as estrelas sobre o mar
e comem todos os barcos de amar
e dizem que eu procuro fantasmas
nas letras cansadas do muro pintado de branco
como as coisas belas do teu corpo inexistente triste ausente,

Todas as pedras do amor com flores de vidro
procuro-te sabendo que pertences às sombras infinitas das equações diferenciais
mesmo sabendo que poderás estar dentro de uma integral tripla
não sei
se algum dia pegarei na tua mão
e numa ardósia de fim tarde escrever – AMO-TE.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Às paredes e às teias de aranha porque dançavam os meus desenhos

Ouvia-o nos meus sonhos, desligava-se a noite no interruptor dos sentidos, acendia-se um cigarro que às vezes deixava solitariamente sobre a cómoda, o isqueiro, algumas moedas, poucas, sempre, e ouvia-o dançando na atmosfera helénica dos versos amarfanhados pelos vómitos das plantas cansadas de sofrer, choravam, todos, às vezes ouvia-o
Ouvia-os,
Choviam,
E eu,
E eu, eu ouvia-os dançando como pássaros anti-tempestade, tracção às duas rodas, asas de liga leve, dentes cromados com suspensórios de couro, e eu
Ouvia-o,
Ele chorava, amava-a pacientemente como quem ama uma árvore e tem a perfeita consciência que não lhe pertence, porque as árvores são livres, e ela não lhe pertencia (o coração) porque ninguém é dono de ninguém, pedia emprestado o caderno e a caneta, parvamente apaixonado, e não percebia que os bonecos de borracha são mais saudáveis que os bonecos de palha, porque não têm saudades, não sabem o que é o amor, e
Ouvia-o, ouvia-os,
Não sei,
E os bonecos de borracha dificilmente se constipam, dificilmente se revoltam contra os governos democraticamente eleitos, não sei, mas nos meus sonhos havia um desejo indesejado de voar sobre a terra queimada, aprendeu matemática e começou a escrever, e começou a desenhar, e começou a descambar
Como eles e elas,
Contra as paredes invisíveis que os outros bonecos, os de palha, construíam nas noites de lua cheia, e eu
Ouvia-os,
Dançando abraçados aos meus míseros cigarros com olhos imperfeitos e incolores e iletrados, liberdade para todos, gritava alguém com palavras acesas em tinta vermelha no muro junto à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje
Os bonecos de palha são escuros, interinos oficiais das histórias de uma cidade desaparecida, eles são os guardiões das portas secretas dos amores proibidos, amem-se livremente
Como se amam os barcos e as flores e as gaivotas e os papagaios de muitas cores,
Mas
Amem-se, não como eu vos amei, mas amem-se como os ouvíamos sobre a cómoda em busca de um silêncio submerso nas palavras ditas em dias de quinta-feira, amem-se
Mas
Ainda hoje,
Ouvia-os,
Ouvíamos (Dançando abraçados aos meus míseros cigarros com olhos imperfeitos e incolores e iletrados, liberdade para todos, gritava alguém com palavras acesas em tinta vermelha no muro junto à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje) os, ouvíamos os homens que queimavam os bonecos de palha que se recusavam a simplesmente a acenar com a cabeça, ora elevando-a, ora, ora baixando-a
E eu perguntava-lhes
Custava seus palermas palhaços bonecos de palha? Custava-vos alguma coisa dizerem que sim desenhando uma vénia no ar com misturas de vapor de iodo e sal marinho, Custava-vos seus palhaços cabeçudos?
E que sim, que sim, simplesmente
Sim,
E ela perguntava-lhes
(Desisto de perguntar às paredes e às teias de aranha porque dançavam os meus desenhos que deixei nas paredes de uma casa, num bairro, em Luanda),
E ela perguntava-lhes se sabiam que os sonhos
Sabiam que os sonhos são pedaços de papel com códigos indecifráveis como as matrizes complexas e indesejadas pelos saudosos bonecos de palha, porque os de borracha, esses, quase sempre eram imunes às conversas sobre o amor e a paixão e a noite das noites com sabor
A limão,
E cerejas dentadas como as rodas recheadas com mel e aço inoxidável,
Dos beijos, dos vapores camuflados que habitavam as esquinas assombradas das casas sem janelas, e ouvíamos
Dançando, gritando,
As palavras acesas em tinta vermelha no muro junto à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje,
Os relógios sem vontade de dançarem,
Dançando, gritando,
(Ele chorava, amava-a pacientemente como quem ama uma árvore e tem a perfeita consciência que não lhe pertence, porque as árvores são livres, e ela não lhe pertencia (o coração) porque ninguém é dono de ninguém, pedia emprestado o caderno e a caneta, parvamente apaixonado, e não percebia que os bonecos de borracha são mais saudáveis que os bonecos de palha, porque não têm saudades, não sabem o que é o amor, e)
Também eu, também eu não sei o que é, o que são.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Cachimbo de Água em destaque - Sapo Angola