Um compartimento exíguo, aquilo que me define, o
que sou, milímetros quadrados de nada, sem janelas, portas ou
madrugada,
Do meu soalho, com algumas ranhuras, vê-se o sol, e
facilmente se percebe que eu, ou seja, o meu compartimento está
invertido, rodado cento e oitenta graus, talvez durante a noite,
talvez quando acordou o dia, talvez
As portas sem madrugada,
Ou
Corações sem nada, simples, mistos, entre fios e
hastes helicoidais, animais de estimação e um cão, com voz rouca,
sofrendo, as mentiras de uma infinita palavra, começada por hoje e
terminada em...
Nada,
Ou,
Do meu pobre soalho vejo além do sol, o rio das
lágrimas doiradas, vejo também as desorientadas luzes dos dias que
construíste sem a minha autorização, rodeaste-me de mentiras e
falsidades, de equações do terceiro grau, as incógnitas
desapareciam entre o papel quadriculado e o lápis de desenho, e
percebi que não tinha jeito para ser engenheiro, nem letrado, nasci
para ser um ser desprovido de tudo, eis a única felicidade de mim,
não ter, não ser
Nada, madrugada, corações sem nada, sobre os
pinheiros iluminados pelo perfume doentio das manhãs sem rio, e o
cio?
O que tem o cio?
Tem frio?
Ou, também ele, como eu, um ser desorganizado,
indiferente ao perfume com sabor a nafta dos barcos de papel quando
atravessam a estrada ziguezagueada das loucas locomotivas que os
pássaros deixam cair sobre as cabeças empastadas de laca
E às vezes
Sinto-os,
Sobre mim,
Ou
Também eles, como eu, um ser desorganizado e sem
destino à vista, com uma previsão de sucesso de zero vírgula zero
zero um por cento, fantástico, fascinante, e descubro que é mais
fácil levar com um parafuso de um satélite na cabeça do que
acertar na combinação correcta do euro milhões, sobre mim, tudo
bem, análises normais, radiografias normais, e tirando a insónia
dos teus olhos sempre suspensos no tecto do meu quarto, eu diria que
Sou um ser humano normal, feliz, sucessivamente a
tropeçar nas pedras invisíveis que as palavras arrumam dentro dos
caixotes de lixo semeados pelas ruas estreitas e largas da cidade com
garganta de vidro e um simples olho de diamante lapidado pelas mãos
de uma linda e nobre flor,
Estupidamente
O teu Príncipe imperfeito, sem jeito, nem afeito,
como os camelos encalhados nas ruelas do deserto, uso um capacete de
fibra de vidro para me proteger das possíveis agressões das
gaivotas revoltadas com as minhas palavras,
(por isto da escrita nem sempre agradamos a todos, e
tenho recebido algumas queixas, poucas, de gaivotas, alguns barcos de
recreio e de um livro que vive atormentando-me, veja-se que ele quer
passar à frente da lista de espera, quer isto dizer, nada, que a
madrugada, existe para me obrigar a sair da cama, e que a noite,
existe, para me obrigar a olhar os olhos suspensos da flor linda que
alguém inventou para mim),
Gostava de ti e nunca o disse, por algumas flores
são como os versos entrelaçados nas rimas com preguiça, enrolam-se
nas ervas junto à eira de Carvalhais, e depois, depois descem até
conseguirem rodar o meu exíguo compartimento cento e oitenta graus,
e através do meu soalho,
O sol é uma miragem, e através dos buracos do
soalho consigo com a minha mão acariciar o mar, e as algas com
sorriso de amar, porque às vezes, o amor
(Não é só fodido – livro de Miguel Esteves
Cardoso)
O amor pode causar danos irreversíveis no seu
coração de areia, seu, meu, nosso, o deles,
De todos os corações,
De todas as cores, de papel, plástico ou vinil,
todos
Eles,
Encalhados nas profundezas das aranhas com sete
patas de alumínio e com asas de casca de amêndoa, dinamicamente nas
algibeiras das equações quando as calças de cetim se rompem com a
força do vento, depois vem a estática, e as equações parecem
beijos moribundos e desenganados pelas ardósias das tardes junto à
lareira, e assim
Vai andando sobre rodas, o amor e o desejo de amar,
Como o relógio de bolso, o meu, que me espera
sentado na prateleira da minha estante na companhia de alguns livros,
cachimbos, e meninas de sorriso loiro,
E confesso
Não me apetece pegar-lhe.
(não revisto, ficção)
@Francisco Luís Fontinha
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