sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Manhãs sem rio

Um compartimento exíguo, aquilo que me define, o que sou, milímetros quadrados de nada, sem janelas, portas ou madrugada,
Do meu soalho, com algumas ranhuras, vê-se o sol, e facilmente se percebe que eu, ou seja, o meu compartimento está invertido, rodado cento e oitenta graus, talvez durante a noite, talvez quando acordou o dia, talvez
As portas sem madrugada,
Ou
Corações sem nada, simples, mistos, entre fios e hastes helicoidais, animais de estimação e um cão, com voz rouca, sofrendo, as mentiras de uma infinita palavra, começada por hoje e terminada em...
Nada,
Ou,
Do meu pobre soalho vejo além do sol, o rio das lágrimas doiradas, vejo também as desorientadas luzes dos dias que construíste sem a minha autorização, rodeaste-me de mentiras e falsidades, de equações do terceiro grau, as incógnitas desapareciam entre o papel quadriculado e o lápis de desenho, e percebi que não tinha jeito para ser engenheiro, nem letrado, nasci para ser um ser desprovido de tudo, eis a única felicidade de mim, não ter, não ser
Nada, madrugada, corações sem nada, sobre os pinheiros iluminados pelo perfume doentio das manhãs sem rio, e o cio?
O que tem o cio?
Tem frio?
Ou, também ele, como eu, um ser desorganizado, indiferente ao perfume com sabor a nafta dos barcos de papel quando atravessam a estrada ziguezagueada das loucas locomotivas que os pássaros deixam cair sobre as cabeças empastadas de laca
E às vezes
Sinto-os,
Sobre mim,
Ou
Também eles, como eu, um ser desorganizado e sem destino à vista, com uma previsão de sucesso de zero vírgula zero zero um por cento, fantástico, fascinante, e descubro que é mais fácil levar com um parafuso de um satélite na cabeça do que acertar na combinação correcta do euro milhões, sobre mim, tudo bem, análises normais, radiografias normais, e tirando a insónia dos teus olhos sempre suspensos no tecto do meu quarto, eu diria que
Sou um ser humano normal, feliz, sucessivamente a tropeçar nas pedras invisíveis que as palavras arrumam dentro dos caixotes de lixo semeados pelas ruas estreitas e largas da cidade com garganta de vidro e um simples olho de diamante lapidado pelas mãos de uma linda e nobre flor,
Estupidamente
O teu Príncipe imperfeito, sem jeito, nem afeito, como os camelos encalhados nas ruelas do deserto, uso um capacete de fibra de vidro para me proteger das possíveis agressões das gaivotas revoltadas com as minhas palavras,
(por isto da escrita nem sempre agradamos a todos, e tenho recebido algumas queixas, poucas, de gaivotas, alguns barcos de recreio e de um livro que vive atormentando-me, veja-se que ele quer passar à frente da lista de espera, quer isto dizer, nada, que a madrugada, existe para me obrigar a sair da cama, e que a noite, existe, para me obrigar a olhar os olhos suspensos da flor linda que alguém inventou para mim),
Gostava de ti e nunca o disse, por algumas flores são como os versos entrelaçados nas rimas com preguiça, enrolam-se nas ervas junto à eira de Carvalhais, e depois, depois descem até conseguirem rodar o meu exíguo compartimento cento e oitenta graus, e através do meu soalho,
O sol é uma miragem, e através dos buracos do soalho consigo com a minha mão acariciar o mar, e as algas com sorriso de amar, porque às vezes, o amor
(Não é só fodido – livro de Miguel Esteves Cardoso)
O amor pode causar danos irreversíveis no seu coração de areia, seu, meu, nosso, o deles,
De todos os corações,
De todas as cores, de papel, plástico ou vinil, todos
Eles,
Encalhados nas profundezas das aranhas com sete patas de alumínio e com asas de casca de amêndoa, dinamicamente nas algibeiras das equações quando as calças de cetim se rompem com a força do vento, depois vem a estática, e as equações parecem beijos moribundos e desenganados pelas ardósias das tardes junto à lareira, e assim
Vai andando sobre rodas, o amor e o desejo de amar,
Como o relógio de bolso, o meu, que me espera sentado na prateleira da minha estante na companhia de alguns livros, cachimbos, e meninas de sorriso loiro,
E confesso
Não me apetece pegar-lhe.

(não revisto, ficção)
@Francisco Luís Fontinha

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