Ouvia-o nos meus sonhos, desligava-se a noite no
interruptor dos sentidos, acendia-se um cigarro que às vezes deixava
solitariamente sobre a cómoda, o isqueiro, algumas moedas, poucas,
sempre, e ouvia-o dançando na atmosfera helénica dos versos
amarfanhados pelos vómitos das plantas cansadas de sofrer, choravam,
todos, às vezes ouvia-o
Ouvia-os,
Choviam,
E eu,
E eu, eu ouvia-os dançando como pássaros
anti-tempestade, tracção às duas rodas, asas de liga leve, dentes
cromados com suspensórios de couro, e eu
Ouvia-o,
Ele chorava, amava-a pacientemente como quem ama uma
árvore e tem a perfeita consciência que não lhe pertence, porque
as árvores são livres, e ela não lhe pertencia (o coração)
porque ninguém é dono de ninguém, pedia emprestado o caderno e a
caneta, parvamente apaixonado, e não percebia que os bonecos de
borracha são mais saudáveis que os bonecos de palha, porque não
têm saudades, não sabem o que é o amor, e
Ouvia-o, ouvia-os,
Não sei,
E os bonecos de borracha dificilmente se constipam,
dificilmente se revoltam contra os governos democraticamente eleitos,
não sei, mas nos meus sonhos havia um desejo indesejado de voar
sobre a terra queimada, aprendeu matemática e começou a escrever, e
começou a desenhar, e começou a descambar
Como eles e elas,
Contra as paredes invisíveis que os outros bonecos,
os de palha, construíam nas noites de lua cheia, e eu
Ouvia-os,
Dançando abraçados aos meus míseros cigarros com
olhos imperfeitos e incolores e iletrados, liberdade para todos,
gritava alguém com palavras acesas em tinta vermelha no muro junto à
Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos embalsamados
de bonecos de palha, sempre, ainda hoje
Os bonecos de palha são escuros, interinos oficiais
das histórias de uma cidade desaparecida, eles são os guardiões
das portas secretas dos amores proibidos, amem-se livremente
Como se amam os barcos e as flores e as gaivotas e
os papagaios de muitas cores,
Mas
Amem-se, não como eu vos amei, mas amem-se como os
ouvíamos sobre a cómoda em busca de um silêncio submerso nas
palavras ditas em dias de quinta-feira, amem-se
Mas
Ainda hoje,
Ouvia-os,
Ouvíamos (Dançando abraçados aos meus míseros
cigarros com olhos imperfeitos e incolores e iletrados, liberdade
para todos, gritava alguém com palavras acesas em tinta vermelha no
muro junto à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com
corpos embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje) os,
ouvíamos os homens que queimavam os bonecos de palha que se
recusavam a simplesmente a acenar com a cabeça, ora elevando-a, ora,
ora baixando-a
E eu perguntava-lhes
Custava seus palermas palhaços bonecos de palha?
Custava-vos alguma coisa dizerem que sim desenhando uma vénia no ar
com misturas de vapor de iodo e sal marinho, Custava-vos seus
palhaços cabeçudos?
E que sim, que sim, simplesmente
Sim,
E ela perguntava-lhes
(Desisto de perguntar às paredes e às teias de
aranha porque dançavam os meus desenhos que deixei nas paredes de
uma casa, num bairro, em Luanda),
E ela perguntava-lhes se sabiam que os sonhos
Sabiam que os sonhos são pedaços de papel com
códigos indecifráveis como as matrizes complexas e indesejadas
pelos saudosos bonecos de palha, porque os de borracha, esses, quase
sempre eram imunes às conversas sobre o amor e a paixão e a noite
das noites com sabor
A limão,
E cerejas dentadas como as rodas recheadas com mel e
aço inoxidável,
Dos beijos, dos vapores camuflados que habitavam as
esquinas assombradas das casas sem janelas, e ouvíamos
Dançando, gritando,
As palavras acesas em tinta vermelha no muro junto
à Igreja, eu tinha medo, dos sonhos, das marés com corpos
embalsamados de bonecos de palha, sempre, ainda hoje,
Os relógios sem vontade de dançarem,
Dançando, gritando,
(Ele chorava, amava-a pacientemente como quem ama
uma árvore e tem a perfeita consciência que não lhe pertence,
porque as árvores são livres, e ela não lhe pertencia (o coração)
porque ninguém é dono de ninguém, pedia emprestado o caderno e a
caneta, parvamente apaixonado, e não percebia que os bonecos de
borracha são mais saudáveis que os bonecos de palha, porque não
têm saudades, não sabem o que é o amor, e)
Também eu, também eu não sei o que é, o que são.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha