As diurnas caixa dos sonhos (esmolas?) que de
estabelecimento comercial em estabelecimento comercial, de jardim em
jardim, de cave em cave, escondem, semeiam, gratificam, as poucas
moedas e notas que o homem dos gelados de chocolate foi deixando pelo
chão, hoje sei que no Baleizão uma casa fantasma andava sempre de
mão dada comigo, hoje sei que quando olhava a estátua da Maria da
Fonte um petroleiro com bandeira da República Popular da China voava
entre os meus cabelos e a incensa luz dos olhos agrafados aos pedaços
de papel que sobejaram das tardes debaixo das mangueiras, hoje sei
que
Deixei de saber, os anos atracam-se-me como
correntes de aço, roubam-me os poucos sonhos que ainda restavam ao
meu cadáver corpo de madeira prensada, e também existe o problema
das asas de alumínio, os parafusos roucos devido às noites que
passei sentado nos bancos de jardim à espera da menina do circo, e
nunca mais chegava, chega, até que o arame que ligava as duas
margens partiu-se em bocadinhos, centímetros de arame que
aconchegadamente podem eternamente viver dentro da minha algibeira,
Tens saudades minhas? Respondia-te que não
fingindo, porque sempre tive saudades dos caixotes de madeira, das
moscas com muitas patas e asas transparentes, porque sempre tive
saudades das pontes, dos teus cabelos de fio doirado e corpo
magríssimo quando sobre o arame atravessavas as duas margens e
desaparecias na neblina de Almada, claro
Que tenho saudades tuas sua tonta,
E depois do espectáculo, descias, construías uma
vénia ao teu sorridente público e ias esconder-te na caravana
estacionada a poucos metros do palco invisível, que o teu pai,
empresário, ilusionista e palhaço, demorou um inteiro dia a montar
sobre o pavimento térreo do voo nocturno dos pássaros embebidos na
vodka dos miúdos à porta do cabaré, e quando lhes perguntavam se
tinham factura?
Em uníssono respondiam
Tinhas corpo de bailarina, como as abelhas em busca
do pólen que dos rochedos da insónia agrediam verbalmente os homens
que no Baleizão semeavam gelados de chocolate junto à esplanada
recheada de cadeiras e mesas e pessoas
De chapa zincada,
Em uníssono respondiam que com a fome comeram a
(fatura) e com um pouco de sorte, durante a noite, ela, debaixo do
(teto) das amendoeiras em flore, certamente era expedida através das
entranhas do rabo ensanguentado devido à grossura do papel que
tapava as fendas das paredes da caravana, ela
Esplanada recheada de cadeiras e mesas e pessoas
adormecia nos meus braços e pela janela da caravana eu, eu via a luz
mergulhada nos Cacilheiros em corridas como círculos em volta de uma
árvores de sombra
Ela gritava,
E ouviam-se-lhe os gemidos dos motores a diesel
engasgados com os rebuçados de mentol e recheados com sonhos, os
mesmos que a gaveta durante anos, e anos, e anos,
Guardou como objectos valiosos, como ainda tenho
todos os pedaços de arame que ela utilizava para atravessar as duas
margens, e quando poisava em Almada, ouviam-se-lhes os gemidos
Dos motores a diesel que da caravana uma janela
imprimia o rosto de um menino abraçado a uma menina, que procuravam,
em busca, das asas de vidro das noites voadoras sobre o rio
circunflexo dos alguidares de alumínio, e na verdade, deixei,
deixamos, perdemos-nos
Antes do espectáculo começar e ela se transformar
em nuvem de algodão, e hoje sinto saudades das inocentes (diurnas
caixa dos sonhos (esmolas?) que de estabelecimento comercial em
estabelecimento comercial, de jardim em jardim, de cave em cave,
escondem, semeiam, gratificam, as poucas moedas e notas que o homem
dos gelados de chocolate foi deixando pelo chão, hoje sei que no
Baleizão uma casa fantasma andava sempre de mão dada comigo, hoje
sei que quando olhava a estátua da Maria da Fonte um petroleiro com
bandeira da República Popular da China voava entre os meus cabelos e
a incensa luz dos olhos agrafados aos pedaços de papel que sobejaram
das tardes debaixo das mangueiras, hoje sei que), que desciam do céu,
e silenciosamente se sentavam nas cadeiras do Baleizão, aos poucos,
um miúdo de seis anos apaixonava-se por uma trapezista com asas e
que usava na cabeça fios, mas muito mínimos, de oiro, como as gajas
que muitos anos depois eu via nas caves dos bares em Cais do Sodré,
Ela gritava,
Aos poucos, um miúdo de seis anos apaixonava-se por
uma trapezista com asas e que usava na cabeça fios, mas muito
mínimos, de oiro, que o vento levou como leva todas as palavras de
amor.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha