quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A catalogadora de ossos

As cerejas pareciam loucas de ciúme enquanto ele saboreava um cacho de uvas cor de sílabas mentirosas e sorrisos de poeira, e conforme o retirou da nobre videira assim foi saboreando cada bago, bolinhas de sumo com sabor inconfundível, bolinhas imaginárias com olhos de prata apontando os desfiladeiros que o levavam até ao rio, curvas de carris caminhavam como se fossem grãos de areia a descer a montanha, bem lá no altíssimo altar da natureza, jazia um abrunheiro com bronquite e ao lado, na cama número treze, um pequeno pessegueiro a queixar-se de dores intensas na coluna, o médico, um castanheiro de meia-idade tinha-lhe diagnosticado reumatismo agudo, devido à doença da Tinta, em frente a ele, na cama número nove dormia o limoeiro, que devido aos sedativos que sobejavam dos pingos das bolhas castanhas que uma fina prata de alumínio derramava, pedrado como os seixos brancos dos mares clandestinos, há dois dias que tinha levantado voo e apenas víamos o corpo esquelético sobre os cobertores de aço onde se deitava, o resto
Ninguém sabia onde encontrar,
Tinham-se esquecido de encerrar as janelas, estava vento, tínhamos medo que a sua força levasse os frágeis ossos do adormecido limoeiro, uma roseira, experiente catalogadora de ossos, numerou-os, e um a um, todos, como se fossem pedras de granito quando um ricaço qualquer as resolve transladar para outro local, a bananeira, desenhadora e escritora, fez o respectivo esboço, e assim, tínhamos a garantia que tudo o que acontecesse ao coitado do limoeiro, sempre o podíamos reconstruir, e levá-lo para outro local, se necessário,
Tenho quarenta e sete anos, sou um plátano e perdi vinte e cinco quilogramas, e tudo por apenas três drageias por semana, agora sinto-me..., sinto-me como se tivesse vinte anos, o tronco está mais delgado, e os meus ramos, encolheram, e agora até já consigo sentar-me num dos bancos de madeira que vivem no jardim ou baixar-me e colocar a caixa vazia de cigarros na papeleira, e tudo quase sem esforço, e tudo por pouco dinheiro,
E ninguém sabia onde encontrá-lo, na aldeia até já tinham pedido ao senhor Prior para rezar uma missa pela sua pecadora alma, e em uníssono diziam
Coitado do limoeiro, no fundo era um desgraçado, e tirando o vício, uma jóia, uma jóia de árvore
O senhor Prior rezou a missa pelo seu desaparecimento, ao centro da Igreja tinham colocado a fotografia a preto e branco de quando ele ainda era uma árvore robusta, forte, e nem a mais agreste das tempestades a conseguiam derrubar, mas agora, agora vive na agonia de partir sem que venham a saber a verdadeira história dele, e talvez por essa razão, hoje relate a vida e os saborosos limões que este meu amigo limoeiro deu, vendeu, e se não fosse o maldito vento
Ninguém sabia onde o encontrar, e o maldito vento conseguia arrastar as rochas do fundo do mar até ao santuário, nas algibeiras viemos a descobri pedaços de corda de nylon, não percebíamos qual a sua utilidade, mas hoje sabemos que foi com essas mesmas cordas que o triste limoeiro se suicidou, quando acordou da sonolenta paixão pelas bolhas castanhas, amarrou-se com uma das pontas da corda de nylon e a outra ponta prendeu-a a um dos pilares da enfermaria, depois
Depois coitado, ninguém sabia onde o encontrar,
E depois, quando já a noite poisava sobre o pavimento irregular da enfermaria-montanha, ergueu-se, cruzou os braços e voou em direcção ao abismo, e gritava enquanto sufocava
Detesto mentiras, Detesto mentiras, Detesto...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Uma grade de aço com boca de quadriculas

Cessaram-se-lhe todos os ínfimos pingos de chuva que mergulhavam nos olhos vendados do homem prisioneiro da janela dos sonhos, havia silos de areia para ornamentar o regresso das navalhas de prata que docemente alimentariam o peito almofadado, acordava o vento que dançava abraçado aos ramos cintilantes das eternas manhãs desprovidas do orvalho semeado durante a noite por um vagabundo com um chapéu de palha seca, começava a chover pedacinhos de botões de açúcar, e mesmo antes de cessarem-se-lhe todos os ínfimos pingos de chuva que mergulhavam nos olhos vendados, ele cuspia pequenas golfadas de vento que fazia correr as folhas mortas que poisavam sobre a relva como um cobertor de lã sobre uma cama imaginária, que todos sabíamos, só ele, apenas ele, conseguiria ver, tocar, deitar-se nela, os dias passava-os sentado numa pedra granítica que tinha sobejado da reconstrução do cais do silêncio, e tinha por hábito cruzar os braços e fincar os lábios nos dentes de gesso há muito fora de validade,
Eu temia o regresso às árvores de poeira com ramos de algodão, sentia-lhes o cheiro intenso quando um interruptor de luz desligava-me os aparelhos vários que dentro de mim habitavam, e que eu já me tinha habituado, tão habituado, que muitas das vezes nem de dava conta que vivia com electrodomésticos no interior do meu estômago, ou um exaustor no interior dos meus pulmões calcinados pelo betuminoso que eu pisava na rodovia que me levava até casa, sentia-me completamente só, e nem os pássaros embalsamados, também eles sós, dormiam tão tristemente como eu dormia, quando as noites chegavam e eu fazia de conta que não estava em casa, batiam-me à porta e eu sabia que do outro lado ninguém à minha espera, talvez um velho morcego, em voos nocturnos, ou um pedra da calçada que se tenha soltado quando da passagem do eléctrico,
Ele acreditava nos abraços do amor e nas relíquias de espuma que o desejo deixava ficar sobre a mesa de pedra no centro do quintal, em volta, uma ramada servia de parede diurna e que quando da vindima colhiam uvas ranhosas completamente embriagadas pelas abelhas do senhor António Joaquim José de Pedro, e um enormíssimo ramo de flores com apetites de pólen esvoaçava como esvoaçavam as gaivotas sobre os velhos cacilheiros que o antigo Tejo abrigava como um pai quando pega no seu filho, e o beija, e o acaricia, e lhe diz baixinho,
Deus te proteja, meu querido filho,
Desconheço se algum dia o meu pai fez o mesmo, e se o fez, nem sequer me apercebi, porque perante Deus não existo, como não existo
Ele tinha medo do sono,
Como não existo nos dias ímpares, como não existo estatisticamente neste País de marinheiros sem embarcações robustas, e as poucas que existem, são como o xisto dos socalcos do Douro, parecem esponjas que absorvem toda a água, e os rios tornam-se chatos, amargos, tristes, e de olhar carrancudo,
Ele tinha medo do sono, vestia-se de preto, e no pouco cabelo que lhe cambaleava sobre a cabeça, prendia-lhe uma rosa com um arame de oiro, descia e subia os poste da iluminação pública, e não quero mentir, mas dizia-se que ele era filho da noite e da Lua crescia, fruto de uma relação proibida e extraconjugal, como muitas, e tantas, algumas felizes, outras
Como não existo quando os sons da Primavera dançam no cimo da copa das árvores, como não existo quando me olhas como um louco, um morto-vivo, moribundo, murmúrio magma dos seios de marfim que um artesão esculpiu nas paredes de mármore do meu empobrecido túmulo, como nunca existi
Outras, um fumo azul-celeste rompia a sujidade húmida do cachimbo usado pelo velho António Joaquim José de Pedro, sabíamos que no tabaco bolorento misturava-lhe as drageias para a próstata, insónia e reumático, às vezes, quando não se esquecia, introduzia também pequenos grãos de pólen para as constipações, dizia-nos ele quando lhe perguntávamos o que faziam grãos de pólen misturados no tabaco de cachimbo,
Hoje ninguém se interessa pelo magnetismo que tinham e têm os espectáculos de circo, a magia da inocência, as pálpebras de lona suspensas no tecto embaciado das matinés embrulhadas no ténue cacimbo da saudade, ouviam-se os lilases sorrisos da menina trapezista sobre um arame invisível, eu conseguia ouvir-lhe a respiração ofegante, trémula às vezes, em gemidos de Pôr-do-Sol, outras,
Ele tinha medo do sono,
Duas galinhas tinham acabado de morrer por afogamento, e o zinco que as cobria, em círculos no quintal do vizinho, eu gostava dele porque às vezes via-o em pequenos voos em volta das mangueiras, e com um saco de rede, recolhia todas as sombras que encontrava, dizia-nos que serviam para nas horas vagas fazer pequenas esculturas que posteriormente as vendia na Baía de chocolate banhada pelo mar de amêndoa, e também sejamos francos, o que são duas galinhas e três ou quatro chapas de zinco?, trocos, miúdos (de frango?), bonecos de borracha pendurados num triciclo enferrujado, como eu, que deixei de existir, que deixei
Medo do sono,
Colorir-me com o medo do senhor António Joaquim José de Pedro e quando acordar em mim a insónia, fazer de conta que não existo, como sei que nunca existi
Para ti, para mim, para eles, para elas,
Em vidro opacos completamente mergulhados nas roldanas de um relógio de pulso, e sabia-o
Que nunca existiram pingos de chuva,
E sabia-o
Que nunca existiram olhos vendados,
E sabia-o
Que nunca existiu um homem prisioneiro e a janela dos sonhos era uma grade de aço com boca de quadriculas que faziam sombra nos silos de areia.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Envergonhados barcos em loucos oceanos de gelo

Que faço eu sobre este pedaço de gelo esquecido no intranquilo mar da solidão? Perguntavam-se-lhes homens com cabeça de abóbora e olhos de cinzento amanhecer, não respondiam, cerravam os lábios de giesta nas rochas onduladas do faminto monte dos milagres incompreendidos, olhávamos-nos, e víamos entre os poste de cimento que seguravam as velhíssimas videiras, constituindo assim a ramada mais longa e indigesta da aldeia dos bebés filhos da água, os feridos pássaros pelos suspiros das almas gémeas, havia
Que faço eu aqui, meu querido?
Peso? Espaço? Solidão ou paixão em limites parêntesis das quadriculas enumeradas pelo professor de Matemática, via nas equações o sofrimento das palavras, dos homens, e das mulheres disfarçadas de flores com pétalas de sol, e no entanto, não me respondes à simples questão
Que faço eu aqui, meu querido?
Havia pinheiros velhos com bengalas de sombra e da penumbra escuridão dos olhos cinzentos dos homens com cabeça de abóbora uma atmosfera de embriaguez soltou-se da mesa com piso de mármore onde deixavas ficar os pedaços de papel e a caneta esfomeada, sem tinta, secos os mamilos da poesia, e no entanto
Quando me perguntas
O que faço eu aqui?
Não sei minha pobre filha com sabor a morango, e no entanto, uma navalha entranha-se-te e olhas-me de soslaio sabendo tu que nas minhas mãos vivem grãos de pólen e sementes de aveia, e tu apenas desejas que eu te responda à simples questão
Que faço eu aqui, meu querido? E dizes-me que não és abelha, Eu não sou uma abelha, portanto não preciso do pólen das tuas mãos, confesso em voz baixa que
Ela tem razão, como têm todas as noites de vigia que eu passava a olhar as bandeiras pintadas de orvalho quando desciam a calçada as meninas com borboletas pintadas na saia, sobre os cabelos tinham uma vaga escura vinda do oceano quando ainda tínhamos oceano em casa, abríamos a janela e encontrávamos os lábios da doce nuvem pintalgada de desejo e olhar doentio, e quantas vezes perdemos o que desejamos por nos calarmos? Ouvia-a enquanto queimava alguns dos meus desenhos na lareira, e confesso em voz baixa que começo a ficar um sonhador liquefeito, e confesso em voz baixa que começo a ficar sonolento, e sinto-me escorrer para a sarjeta em frente à casa dos pilares de areia, cheira-me a ferro fundido, a aço emagrecido, cheira-me a bolhas de luz com dentes de alumínio, e
Quando me perguntavas
O que faço eu aqui?
Dizia-te que havia pinheiros velhos com bengalas de sombra e da penumbra escuridão dos olhos cinzentos dos homens com cabeça de abóbora uma atmosfera de embriaguez soltava-se da mesa com piso de mármore onde deixavam ficar os pedaços de papel e a caneta esfomeada, sem tinta, secos os mamilos da poesia, e no entanto, tal como ontem, hoje, amanhã, continuarás a perguntar-me
O que faço eu aqui?
E eu perguntar-te-ei se gostas de cá andar
Gostas de cá andar? No mundo? Responder-me-ás
E vais esconder-te nos dejectos das palavras em cio,
Como os rios misturados nos envergonhados barcos, ao longe sente-se o latido de um canino solitário, talvez, tal como a caneta de tinta permanente, aquela que há pouco ficou esquecida sobre a mesa de mármore, esfomeada, sem tinta, com os mamilos da poesia secos, extintos, talvez eu tenha de assassinar a mulher de porcelana e o homem de vidro, que vivem, que vivem perguntando-me
O que fazemos aqui? Quantos éramos antes de possuirmos o teu corpo?
Que vivem disfarçados e disfarçadas como as raízes dissolvidas no almofariz da noite voadora com penas de cetim, havia, havia, havia em cada electrão um raio ínfimo com a capacidade de transformarem-me em gelo, e assim, deitava-me liquefeito e acordava solidamente sorridente, como as perdizes cansadas que deixaram de voar no monte da fantasia, bastando-lhes para isso, baixarem bruscamente a temperatura do amor confuso, fusco, vigiado por cabeças de alfinete ante do Big Bang, e depois eu ficava um pedaço de gelo esquecido no intranquilo mar da solidão.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
 

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