foto de: A&M ART and Photos
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Sentia-me surpreendentemente minúsculo no colo
dele, sentia-lhe o medo na ponta dos dedos, sentia-lhe a ofegante
madrugada a entranhar-se nos seus olhos castanhos, sentia-me
E ele percebia as minhas tristes pálpebras desde
que acordei da noite e nunca mais adormeci, e nunca mais sonhei, e
nunca mais..., amei, porque
Sentia-me envergonhado de ser um menino em papel
colorido com cabeça a preto-e-branco, sentia-me envergonhado porque
sabia que o vento me vinha buscar, e que eu, eu não tinha coragem de
pronunciar a palavra “Obrigado”, porque, porque percebia-se nas
telhas do casebre que mais tarde ou mais cedo algo de triste
Triste?
Que algo de triste ia acontecer, e aconteceu, e...
senti-me ténue nas mãos garras da gaivota sem nome, pediram-me a
certidão de nascimento, acanhadamente respondi-lhes que não a
tinha, que nunca a tive, porque
Sou,
Sentia-lhe o cheiro da naftalina nas roupas
emagrecidas, e eu
Sou, sou um apátrida com dentes de marfim, e eu, eu
sabia que morreria como um rio de encontro ao mar, que morreria como
um barco encalhado num velho quintal de um velho bairro onde
habitavam velhas casas, com velhas árvores, onde viviam velhos
Sou,
Pássaros como bolas de naftalina, como beijos
prometidos e nunca dados, como beijos perdidos na avenida longínqua
da saudade, e sentia-te sentir na minha mão os teus velhos lábios,
os teus lábios inventados pelo batom encarnado, e de uma roulote
ouviam-se-lhe os gritos da distância, no oitavo andar sentia-lhe os
sons amorfos encurralados na janela de porcelana, ele chorava entre
as linhas do velho, também ele, do velho
Caderno quadriculado?
Um lindo poema morre, e sou, sentia-lhe o cheiro da
naftalina nas roupas emagrecidas, e eu conversava com as também
velhas sombras de Deus, e de nada percebia, queríamos conversar e
não tínhamos todas as palavras necessárias, Deus imaginava-me um
louco vestido de andaime suspenso num oitavo andar da memória, Deus
queria-me e eu sentia-lhe os sonoros melódicos suspiros do velho
piano de cauda, um livro estava com febre, uma mão agachada no
capim, tristemente agoniada... mão, não tinha força para se
levantar, para gritar, para chamar os velhos pássaros que viviam nas
velhas árvores no velho quintal,
Caderno quadriculado?
Sou,
Sou, sou um apátrida com dentes de marfim, e eu, eu
sabia que morreria como um rio de encontro ao mar, que morreria como
um barco encalhado num velho quintal de um velho bairro onde
habitavam velhas casas, com velhas árvores, onde viviam velhos
meninos, e que vestiam velhos calções e calçavam velhas
sandálias... e nas mãos
Nas mãos velhos papagaios em papel pardo,
E nas mãos sentia-lhe o nome “pai”, e ele
percebia o meu choro, as minhas lágrimas, como percebeu muito mais
tarde o meu sonho...
(ficção – não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 9 de Fevereiro de 2014