domingo, 9 de fevereiro de 2014

Um menino em papel colorido com cabeça a preto-e-branco

foto de: A&M ART and Photos

Sentia-me surpreendentemente minúsculo no colo dele, sentia-lhe o medo na ponta dos dedos, sentia-lhe a ofegante madrugada a entranhar-se nos seus olhos castanhos, sentia-me
E ele percebia as minhas tristes pálpebras desde que acordei da noite e nunca mais adormeci, e nunca mais sonhei, e nunca mais..., amei, porque
Sentia-me envergonhado de ser um menino em papel colorido com cabeça a preto-e-branco, sentia-me envergonhado porque sabia que o vento me vinha buscar, e que eu, eu não tinha coragem de pronunciar a palavra “Obrigado”, porque, porque percebia-se nas telhas do casebre que mais tarde ou mais cedo algo de triste
Triste?
Que algo de triste ia acontecer, e aconteceu, e... senti-me ténue nas mãos garras da gaivota sem nome, pediram-me a certidão de nascimento, acanhadamente respondi-lhes que não a tinha, que nunca a tive, porque
Sou,
Sentia-lhe o cheiro da naftalina nas roupas emagrecidas, e eu
Sou, sou um apátrida com dentes de marfim, e eu, eu sabia que morreria como um rio de encontro ao mar, que morreria como um barco encalhado num velho quintal de um velho bairro onde habitavam velhas casas, com velhas árvores, onde viviam velhos
Sou,
Pássaros como bolas de naftalina, como beijos prometidos e nunca dados, como beijos perdidos na avenida longínqua da saudade, e sentia-te sentir na minha mão os teus velhos lábios, os teus lábios inventados pelo batom encarnado, e de uma roulote ouviam-se-lhe os gritos da distância, no oitavo andar sentia-lhe os sons amorfos encurralados na janela de porcelana, ele chorava entre as linhas do velho, também ele, do velho
Caderno quadriculado?
Um lindo poema morre, e sou, sentia-lhe o cheiro da naftalina nas roupas emagrecidas, e eu conversava com as também velhas sombras de Deus, e de nada percebia, queríamos conversar e não tínhamos todas as palavras necessárias, Deus imaginava-me um louco vestido de andaime suspenso num oitavo andar da memória, Deus queria-me e eu sentia-lhe os sonoros melódicos suspiros do velho piano de cauda, um livro estava com febre, uma mão agachada no capim, tristemente agoniada... mão, não tinha força para se levantar, para gritar, para chamar os velhos pássaros que viviam nas velhas árvores no velho quintal,
Caderno quadriculado?
Sou,
Sou, sou um apátrida com dentes de marfim, e eu, eu sabia que morreria como um rio de encontro ao mar, que morreria como um barco encalhado num velho quintal de um velho bairro onde habitavam velhas casas, com velhas árvores, onde viviam velhos meninos, e que vestiam velhos calções e calçavam velhas sandálias... e nas mãos
Nas mãos velhos papagaios em papel pardo,
E nas mãos sentia-lhe o nome “pai”, e ele percebia o meu choro, as minhas lágrimas, como percebeu muito mais tarde o meu sonho...


(ficção – não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 9 de Fevereiro de 2014

Gaivota embriagada

foto de: A&M ART and Photos

Sinto-me uma gaivota embriagada em busca do barco adormecido,
um livro perdido,
na tua mão,
esquecido,
na tua mão,
cansada de amar,
sinto-me o volátil nocturno inferno das canções ensonadas,
o velho e eterno... triste coração das estrelas apaixonadas,

Triste Inverno,
sinto a madrugada construída numa folha em papel,
triste, triste, não amada,
triste, triste... como todas as vozes caladas,
silêncios desertos em bosques de areia,
uma veia de aveia,
uma veia... uma veia sentido-se como eu, uma gaivota embriagada,
à procura de um barco, à procura do céu.


@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 9 de Fevereiro de 2014

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Fogueira sem nome

foto de: A&M ART and Photos

Há uma fogueira sem nome que alimenta as lágrimas tuas,
há uma lareira em fome procurando os teus lábios mergulhados no nocturno sofrimento do desejo,
há em ti uma luz ténue que consome, que vive, que... que escreve no teu corpo os versos da solidão,
há uma fogueira que morre,
uma labareda dançando na calçada da vida, que vive, não vive... e sofre, e morre... morre como morrem as pétalas dos jardins de papel,
há uma fogueira sem nome dentro do teu peito anónimo, perdido, uma fogueira... com mãos de mendigo,

Há uma fogueira nos barcos que passeiam no teu rio, o rio que tens dentro das tuas vadias veias,
há um menino que chora,
há uma mulher que não dorme, e acredita nos telhados de vidro,
há lá fora um cão chato, que não se cala, que... e sofre, e morre... morre como morrem as pétalas dos jardins de ternura,
há um vestido suspenso no guarda-fato, “procura-se empregada doméstica”, menina séria, menina honesta,
há... há uma vida construída de pequenos aviões, sem motor, sem palavras... sem sonhos, nada, nada há nos teus sobejantes cansaços em delírios febris.


@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 8 de Fevereiro de 2014