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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Diário

quarta-feira, 24 de Abril de 2024,

manhã e tarde, uma treta, nada a acrescentar, o expediente normal e nos intervalos envolto nos meus pensamentos. Depois do lanche, fiz um cigarro especial e fui até ao jardim Dr Matos Cordeiro fumá-lo. Diga-se que o jardim está muito desprezado e feio e sujo para o meu gosto.

Chamei de “ranhosa” a uma criança, que já no cemitério em conversa com a minha mãe, percebi que não o devia ter feito, isto é, chamar “ranhosa” a uma criança, porque as crianças nunca são “ranhosas”.

Coisas de não ser pai, se o fosse talvez soubesse.

Poderá o leitor questionar-me qual a razão de ir ao cemitério e falar com aquela pessoa que perdemos e que às vezes é difícil de o aceitar. Não o sei, mas penso que ainda não estou maluco e que me sinto muito bem ao fazê-lo.

Com o meu pai falo muito pouco.

Sempre falei muito pouco.

Adiamante.

Talvez deixe aqui o último poema do dia nesta meia página de nada e que tem como título,

Diário.

 

As abelhas também amam

 

Se a colmeia fosse um livro, se cada letra fosse um pedacinho de mel

Se cada palavra fosse uma abelha de lindos olhos

De lábios lindos

À procura do pólen amar.

 

Se cada silêncio, fosse um beijo

Se a cada olhar, caísse uma estrela

A noite era tão escura

Tão escura na colmeia desejo.

 

Se a cada pôr-do-sol duas abelhas se beijassem, se a cada toque de pele, uma gaivota voasse sobre o mar

Na colmeia desejo havia amor, havia mel

Se a colmeia fosse um livro, um beijo, um abraço

Se o mel fosse a noite

E tu

A Rainha da colmeia desejo

Se uma abelha poisasse no teu cabelo…

Acordava um poema.

 

Para uma quarta-feira, não foi muito mau.

sábado, 5 de agosto de 2023

Caderno

 

Cada folha que te escrevo

É uma página enganada

Que percebo

Com o levantar da aurora boreal

Em cada folha que te escrevo

É uma nova madrugada

Deste diário infernal

Cada folha que te escrevo

Poisa o sol nas folhas caducas do silêncio

Que desce por esta parede

E se esconde na minha mão.

 

Cada folha que te escrevo

É um rio sem nome

Em direcção ao mar

De cada linha

Desta folha

Oiço os apitos do comboio com destino a Santa Apolónia…

Em cada folha

A minha mão rasurada

Por uma esferográfica

E o rio morre

Como eu

Morro

Sabendo que cada folha que te escrevo

É uma janela com fotografia para o mar.

 

 

 

 

05/08/2023

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Nem que o coração me implore


Conheci um diário com o coração partido, pequeníssima fenda, mas para um coração dois milímetros é gravíssimo, desastroso,
Ouvia-lhe o ruído das engrenagens junto à fechadura, ouvia-lhe o tilintar de suspiros na tempestade da tarde, ouvia-lhe

as palavras derramadas no papel de parede, desenhos abstractos misturados com pedacinhos de poeira, e fumo de cigarro que embaciavam as lentes dos óculos do diário com o coração partido,

Hoje acordei cedo, abri a janela e a madrugada tinha desaparecido, evaporou-se no interior da alvorada antes da iluminação pública cerrar-se hermeticamente na chávena de café com leite, as torradas sonâmbulas dentro da minha boca recusaram-se à destruição maciça por parte dos meus dentes e o comprimido para deixar de fumar entrou garganta abaixo e possivelmente em sorrisos parvos, e possivelmente, sentou-se junto ao mar,

dois milímetros de uma janela no coração do meu diário, 4 de Maio de 2012, sete horas e trinta minutos,

Chove torrencialmente no meu quintal, um casal de melros a todo o custo protege as crias que adormecem no ninho pendurado na cerejeira sobre a casota do meu cão, pais e filhos estão felizes e o meu cão que detesta chuva está melancólico, triste, ausente, chove torrencialmente no meu quintal e pergunto-me ao olhar a janela de dois milímetros no meu coração se amanhã é sexta-feira ou quinta-feira ou domingo, é que com tanta chuva deixei de perceber os dias, as horas, os minutos e os segundos,

dois milímetros de uma janela no meu coração sem vista para o mar, chove torrencialmente no meu diário e lá fora, e lá fora o coração partido aos pulos como se fosse um pugilista ou um canguru nas margens de um qualquer rio encalhado na Austrália, talvez no Tua, talvez no Douro, talvez no jardim onde brincam plátanos e barcos de papel, talvez na minha mão

Conto os segundos, e oiço através da pequeníssima ranhura do coração do meu diário que hoje é sexta-feira, e se hoje é sexta-feira amanhã é sábado, dia de Antologia de Poesia Moçambicana, finalmente, finalmente as palavras do meu diário a boiarem dentro da chávena de café com leite, finalmente posso terminar o dia porque hoje, porque hoje recuso-me a escrever mais palavras nas suas páginas, nem que o coração me implore,

nunca mais vi o mar, e junto à fechadura o tilintar de suspiros na tempestade da tarde, ouvia-lhes as sílabas assassinas da noite antes de chegar a noite, ouvia-lhes as vogais embriagadas das estrelas antes de a noite ser noite e muito antes de encerrar o meu diário, muitos antes de saber o significado de mar,

Nem que o coração me implore.

(texto de ficção não revisto)