segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O louco amor dos bonecos de trapos

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O Rio,
Nos intervalos fazíamos amor e as tardes intermináveis pareciam pequenos ponteiros de segundos enrolados nas folhas das mangueiras, o relógio estonteando minhocas de neblina nos buracos friorentos, no inverno, que o gesso da parede do quarto transpirava sobre os nossos corpos molhados, chovia, sempre chovia em nós, e ambos amávamos loucamente aquele rio
Qual rio,
qualquer um, sem nome, idade, sonhos, sexo, crenças religiosas, nada, não queríamos saber de nada, apenas que o amávamos loucamente
O rio,
Indolente, faminto, todo o amor aprisionado dentro de um velha caixa de sapatos, tudo envelhecido desde o último encontro e visita à prateleira onde dormem os pequenos bonecos de trapos, o chapelhudo não lá, o chapelhudo ficou lá, longe, fora, e todas as cartas de amor ou as cartas poucas do amor prometido, também elas, lá, longe, do outro lado da rua,
Nua
Também tu?
Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos papel, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos caneta ou lápis ou esferográfica, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos luz e às vezes
Faltavam-nos as palavras de “meda”, pequenas, poucas, algumas perdiam-se nos nossos lábios que um largo com palmeiras desenhava nos paralelepípedos graníticos que a noite escondia como tu te escondias na prateleira onde dormiam
Os ditos bonecos de trapos, alguns construídos com pedaços da tua saia, outros com os restos mortais esqueléticos das minhas calças de ganga, e ainda tínhamos outros, os mais “escurinhos” fazíamos-los com os sobejos de sabão e restos de caligrafia, a minha, tão, tão
Também tu? Quando me pressionavas para deixar de fumar, e nua
A rua dos sentidos perdidos, as alfaias em busca de tractores agrícolas como dentes afiados a rasgarem os extensos torrões de açúcar granulado, de cana, beterraba, adulterado em Sacavém ou noutro local qualquer, bebíamos o afamado uísque das noites de boémia quando as caves abarrotadas semeavam o barrento hálito de insónia em exíguos espaços nocturnos, ela, ela
E eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas,
E partia sem percebermos se era de dia, sem percebermos se era de noite, sem percebermos
(Havia bananas em fartura que acabavam por apodrecer, caíam as mangas e uma pasta viscosa preenchia os segmentos de rectas em vazio que de quem e além apareciam no pavimento de cimento, cruzava os braços e imaginava pequeníssimos regos de sumo de manga como ribeiras a caminharem para os braços de um grande amor a que toda a gente chamava de rio),
Sem percebermos que o amor é assim; nasce, cresce, torna-se adulto e morre, como todas as coisas, e eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas, e eu respondia-lhe que o inferno é aqui.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 27 de janeiro de 2013

(    )
Inocência dos sonhos, a cidade plantada na copa de uma árvore, debaixo dela brincam crianças de cabelo castanho, meninos, meninas, homens, mulheres, silêncios de oiro, rios cansados de regressarem ao mar das oliveiras, entre a montanha dos pilares de areia e a táctil mão de desejo que ela, a minha única irmã, transportava para as cavernas do ciúme, havia a noite, triste, e tínhamos acabado de perder todas as estrelas do céu, penhoradas as nuvens, pergunto-me
Que faço eu aqui? Não sei, mas tenho a certeza que os meus irmãos são loucos, e que as acácias salgadas do meu primo Augusto são processos revolucionários em curso, doutorados pelos bares e caves da cidade, ouviam-se gemidos de luz quando atravessava de eléctrico cidade, a mesma cidade a que todos chamávamos
Cidade da inocência dos sonhos,
Alguns azuis, outros, outros encarnados, confesso, gosto do vermelho, mas prefiro o negro, a noite é negra, os buracos negros, evidentemente, são negros, gosto, adoro, amo, as palavras pretas e pretos que voam dentro dos meus poemas, amo as cidades negras vestidas de branco e inventadas pelas mãos de uma criança negra, preta, húmida
A cidade
Toda nua,
E
Às vezes,
E às vezes ouviam-se orgasmos de mel nas colmeias dos sótãos perdidos dos edifícios perdidamente apaixonados pelos carros em miniatura que o menino António trazia nos bolsos do bibe, chegava à escola, e de bata branca, senta-se numa carteira carunchosa, velha, a mesma onde se tinha sentado o pai, o avô, e o tio Francisco, que diziam ser louco e que depois de ter vivido dez anos na Coreia do Norte, nunca
A cidade
Toda nua,
Às vezes, e dizem que nunca mais apareceu, evaporou-se, como as lâminas de barbear que o aldrabão do meu vizinho me vende, riscadas, velhas, com as janelas extintas em fios de aço, ouviam-se todas nuas
As árvores onde vivia a cidade da inocência dos sonhos, quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes
Nuas, todas nuas
Como os pássaros que viviam no meu pobre sótão, coitado, com um cadastro infernal de doenças, diabetes, colesterol, próstata e nunca esquecer o reumático, e ainda eu não tinha chegado ao primeiro andar já ele em queixumes e aos gritos que às vezes eu não sabia se ele estava mesmo doente, se ele se fingia de doente ou pior, se ele estava grávido e a dar à luz
Eu suava, subia dois a dois, os degraus envelhecidos da madeira ranhosa que o velho Fernando deixou quando partiu para a aventura dos montes de areia, sabia-o e sabia-a, ouvíamos docemente o choro de um recém-nascido, e eu, acreditava
Sim, vou ser pai
E ouviam-se do quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes
Nuas, todas nuas
São gémeos,
E juro que ainda hoje não acredito que de um sótão envelhecido, doente, perdido numa cidade que vive sobre a copa das árvores
Tenham saído os meus queridos irmãos,
Loucos,
Pareciam-se como os outros sótãos da cidade, o mesmo rosto, o mesmo tamanho, a mesma cor, e loucos
E que nunca mais apareceu o tio Francisco.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha


Em “Mudanças” de Mo Yan, várias vezes é referido um camião (Gaz 51) de fabrico Soviético, EX-URSS. Por curiosidade, até para perceber se era ficção do autor, dei-me ao trabalho de pesquisar, e realmente existiu e ainda devem existir camiões Gaz 51; fica aqui a respectiva fotografia. Produção (1946-1976)