segunda-feira, 27 de março de 2023

Os demónios

 Se Deus quiser

Todas as estrelas tombarão sobre o mar,

Todas as nuvens se vestirão de negro,

Se Deus quiser

Deixará de haver luar,

Se Deus quiser

O silêncio dará lugar ao caos…

E viveremos todos na desordem.

 

Se Deus quiser

Seremos todos pobres,

Esfomeados,

Poetas vagabundos…

Drogados.

 

Se Deus quiser

Acordarão do Inferno todos os demónios

E todos os mortos…

Tão belo, Francisco…

Tão belo todos os mortos retomarem à vida,

Uns bons,

Outros…

Outros filhos da puta,

Como os bons,

Também os filhos da puta têm o direito à vida…

À puta da vida.

 

Se Deus quiser

Morrerão todas as flores,

E todas as flores deixarão de ter perfume…

Cheiram tão mal…

As flores…

São imundas,

Não tomam banho.

 

Se Deus quiser

Morrerão todas as árvores

E todos os pássaros;

Tão parvos os pássaros…

E tão estúpidas,

Tão estúpidas as árvores.

 

Se Deus quiser

Pode desaparecer,

Ir embora,

Esconder-se dentro de um cubo de vidro…

E já agora,

Tal como as flores…

Que tome um banhinho de sais…

E desapareça;

Desapareça.

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Despedida

 Despeço-me de ti, meu amor,

Enquanto o sono não me consome,

Enquanto o sono não me come…

Como comeu o meu pai,

Como comeu a minha mãe.

 

Despeço-me de ti

E das flores do nosso jardim,

Despeço-me das tardes junto ao mar,

Das noites debaixo do luar,

Despeço-me de ti, meu amor,

Enquanto o sono não me consome…

Enquanto o sono não me come.

 

Despeço-me dos livros,

Das telas e dos livros…

Que já devia ter queimado,

Tal como das minhas palavras,

Que me despeço,

Entre abraços e pingos de alegria,

Porque meu amor, a despedida…

A despedida é alegria.

 

Despeço-me de todas as coisas,

Que de belas,

Nada têm…

O que tem de belo uma flor,

Um poema,

Ou uma simples tela?

De belo nada têm…

Apenas têm sofrimento,

Dor…

E noites de insónia.

 

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Carta de despedida de uma doente oncológica em fase terminal

 Algures, 27 de Março de 2023,


Meu querido,

 

Provavelmente, quando leres estas minhas palavras, já não estarei entre os vivos e, todo o meu sofrimento terá terminado.

A Francisca, desculpa, meu querido, desculpa… pois, não sabes quem é a Francisca.

A Francisca, a minha filha, já está no terceiro ano de engenharia computacional (não sei a quem ela sai)… vê lá, como o tempo passa, como o tempo voa. Como o tempo voa… meu grande amor.

Sei que brevemente irei partir, sem que te tenha contado toda a verdade, também não sei a razão de te ter ocultado (sim, meu querido, tu, tu és o pai biológico da Francisca), e só agora, que vejo o final do túnel e a luz… é que ganhei coragem de lhe contar; ficou furiosa comigo e julgo que me vai odiar eternamente; tal como tu, talvez… me irás odiar eternamente, mesmo sabendo que tu, meu grande amor, és incapaz de odiar o que quer que seja. Preferes sofrer de que odiar.

E sabes, meu querido, o meu maior receio é que ela nunca venha a procurar-te, gostar ou amar-te; tão teimosa que ela é, mas tal como tu, que és incapaz de dizer a alguém que a amas ou gostas, também ela, também ela é assim…

Peço-te perdão, por tudo.

Recordo os livros que líamos em conjunto, recordo as palavras que me escrevias, e sim, meu querido, as tuas palavras faziam-me sentir tão especial, tão segura… tão… tão amada como nunca o fui. A minha vida foi um erro, um erro que paguei muito caro e que talvez esta maldita doença seja o castigo de Deus por todo o mal que te fiz.

A nossa filha está impossível. Quase não quer falar comigo, não sei se é devido ao meu estado ou ao ter que encarar a verdade; que tu és o pai dela.

Lamento, mas a Francisca nem o teu nome quer ouvir…

Mas peço-te, meu querido, peço-te que tentes conversar com ela, e aviso-te já que não será fácil, pois além de teimosa, ela é também muito orgulhosa; a quem é que ela sairá!

Se eu tivesse forças, juro-te pelo todo o amor que sempre tive para contigo… juro-te que me suicidava, mas já nem forças tenho, neste momento sou um vegetal à espera de voar… voar em direcção ao mar, ao mar que tu tanto amas.

Perdoa-me meu querido, perdoa-me por tudo.

 

Desta que nunca te esqueceu,

 

 

Até um dia, meu querido.

 

(ficção)

domingo, 26 de março de 2023

Retracto

 Sinto tanto a tua falta,

E odeio olhar o teu retracto,

 

A vida é construída de sombras,

Momentos invisíveis que se vão perdendo no tempo,

Às vezes, temos tudo aquilo que queremos da vida…

Outras vezes,

A vida nos dá tudo aquilo que não queremos,

 

E já não suporto olhar-te sobre esse móvel,

Como se estives a observar-me,

Como se estives a olhar-me…

Como sempre me olhaste,

 

Não suporto,

Olhar-te com esse olhar de dor,

Em lágrimas…

Às vezes, apetece-me esconder o teu retracto,

Dentro de uma caixa…

Outras vezes,

Sento-me numa cadeira,

Oiço Pink Floyd…

E talvez acredite, que um dia, qualquer dia…

Me digas; estou aqui, meu querido!

Estou aqui…

 

 

 

Alijó, 26/03/2023

Francisco

Ausência

 Habito neste corpo sem espaço,

Deste corpo ensanguentado

Quando a Primavera promete um abraço…

Neste corpo ausentado.

 

Habito dentro deste mar

Que transporto na minha mão,

Habito em todas as noites de luar,

Das noites onde procuro o pão.

 

Habito neste corpo sem nome,

Deste corpo sem identidade…

Habito dentro deste corpo em fome…

 

Da fome das palavras que deixarei de escrever.

Habito nesta ausência que traz a saudade…

Na saudade de morrer.

 

 

 

Alijó, 26/03/2023

Francisco

sábado, 25 de março de 2023

Os pequenos sorrisos da infância

 Semeávamos as palavras nas lágrimas do Tejo, enquanto junto a nós, um velho cacilheiro se perdia de amores pelo primeiro raio de Sol da manhã, e em cada punhado de palavras que lançávamos ao rio, um pedacinho de silêncio partia em direcção ao mar,

Tínhamos dentro de nós todos os sonhos, tínhamos dentro de nós todas as brincadeiras de um novo dia que brevemente começaria, que brevemente partiria, também ele, como partiram todos os sorrisos que conhecíamos.

Abraçava-a, pegava-lhe no cabelo de Primavera e sabia que do outro lado do rio, que do outro lado do rio havia um barco com mãos de prata e lábios de sangue; era o barco que me trouxe do outro lado do Oceano.

Uma criança chorava. Uma criança desiludida com os dias e com as noites e com os machimbombos…

O Tejo sabia que um dia, que um dia o meu corpo seria absorvido pelas suas mãos, e desde então, procuram nas suas águas um esqueleto sem nome, um esqueleto com asas, um esqueleto de vidro…

Semeávamos as palavras nas lágrimas do Tejo, enquanto junto a nós, um velho cacilheiro se perdia de amores pelo primeiro raio de Sol da manhã, os cigarros entre pequenas pausas para o café, levitavam e desapareciam como pássaros depois da tempestade, e nunca soube o nome daquela tempestade; como deixei de saber o nome das coisas, de todas as coisas.

Bebíamos pequenos tragos de uísque, dançávamos sobre a relva de Belém, à nossa volta, outros esqueletos preenchiam a tarde com piqueniques e outras coisas banais, fumávamos e bebíamos, e voávamos sobre uma Lisboa em construção,

Porque me mataram os esqueletos de prata?

Os barcos de regresso, diziam-nos que amanhã era o futuro, pequenos sorrisos num espelhos com janela para a Calçada da Ajuda, e ela, e ela percebia, aos poucos, que o meu esqueleto nunca mais seria encontrado naquele rio, naquele lugar, naquela cidade.

Hoje, hoje sou procurado pelas sombras daquela cidade, daquelas ruas, hoje sou maias uma das sombras que habitam os jardins onde crescem os pequenos sorrisos da infância.

Ergui-me da cama, abri a janela, puxei por um cigarro e ouvi da boca dela:

Vou embora.

Continuei a fumar, continuei a olhar o Tejo… até que ouvi o som desengonçado e perro da porta do quarto a fechar-se, como se fosse o fecho da tampa do meu caixão.

Depois, depois fechei a janela, escondi-me debaixo do chuveiro, e algumas horas depois, quando já de saída do quarto e chegando à rua, percebi que durante a noite alguém tinha mudado o nome daquela rua; e fiquei sem saber onde estava.

Apenas fiquei com o perfume de um rio, de um rio que pouco a pouco… morre dentro de mim, como morrem todas as coisas em que toco.

 

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco

Mãos que escreviam palavras

 Nasci para sofrer

Nasci para fazer sofrer os outros.

Amei muito.

Fui amado.

Fui mais amado de que amei

Chorei

Fiz chorar.

 

Tive sonhos.

Muitos sonhos.

Hoje…

Hoje apenas espero que o vento me leve,

Que o vento me transporte para a derradeira viagem que me espera…

A longínqua viagem,

Sem destino,

Sem…

Sem o meu corpo.

 

Tive tudo.

Não tenho nada.

Tive o céu e a terra,

Tive poesia nas minhas veias…

Tive palavras,

Muitas palavras,

Livros,

Escrevi livros…

E hoje não tenho nada,

Não tenho as palavras,

Não tenho as mãos que escreviam as palavras…

 

Nem tenho mais livros para escrever.

Amei muito.

Fui muito mais amado de que amei…

Sofri…

Fiz sofrer todos aqueles que me amaram…

Farei sofrer todos aqueles que me venham a amar…

Nasci para sofrer

Nasci para fazer sofrer os outros.

Amei muito.

Fui amado.

Fui mais amado de que amei

Chorei

Fiz chorar…

 

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco