Um dia, quando acordei,
dei-me conta que tinham desenhado o mar no tecto da minha alcofa, e desde
então, nunca mais esqueci o mar.
Tinha alguns meses, as
melódicas equações do sono chegavam a mim através de um pequeno radio a pilhas,
invenção da minha mãe, com o som muito baixinho, deliciava-me; qua maior
felicidade podia ter um bebé, ouvir música e observar a imensidão do mar no
tecto de uma alcofa.
(Francisco) quando a luz
incendeia os meus lábios, e uma nuvem abraça-se ao teu cabelo encantado das
noites sem dormir, todo o mar poisa sobre mim.
O mosqueteiro protegia-me
dos insectos, e pelas pequeninas quadriculas chegam a mim os primeiros raios de
luz, como se à minha volta existisse uma janela com vista para lado nenhum.
Às vezes, as gaivotas
entravam pela janela e desenhavam voos rasantes no tecto da alcofa e eu comecei
a acreditar que um dia, um dia também faço como elas. E ainda recordo o dia em
que zarpei e fiz o meu primeiro voo sobre as periferias de Luanda; foi lindo,
pai. Lindo.
Depois queria ser
comandante de um petroleiro, ou paquete, e durante a tarde, enquanto desenhava
e recortava vestidos de chita para o meu maior amigo, um parvalhão de um
boneco, pequenos petroleiros de insónia desenhavam pequenos quadrados no
pavimento do corredor, depois ouvia os apitos em despedida, e percebia que um
dia, um dia também faço como elas. A tarde despedia-se de nós, poisávamos todos
os apetrechos da costura, lanchava e começa a desenhar o sono na janela que
dava para o jardim, e enquanto a minha mãe confeccionava o jantar, novamente
zarpava e sobre a cidade, deliciava-me com o silêncio dos mabecos.
O sono tomava conta de
mim.
As palavras absorviam-me,
e nas paredes da sala comecei a desenhar figuras estranhas, letras e números. E
um dia vou ser como elas.
(Francisco) como são
lindas as flores dos teus olhos!
(Francisco) como são
lindos os teus lábios e os teus olhos!
Perdi o interesse pelo
mar, comecei a apaixonar-me por barcos, barcos grandes, que o meu pai, todos os
Domingos, me leva a ver; e enquanto os olhava, sonhava que um dia, um dia seria
como elas. (Francisco) como são lindas as tuas mãos!
(Francisco) e dos teus
cabelos as lágrimas do silêncio poisam no meu peito!
E quando regressava a
casa, sentia-me o comandante de todos aqueles navios; um pequeno círculo com
olhos verdes brincava na minha boca, e sabia que um dia, um dia, mãe,
(Francisco) as tuas mãos
são lindas, meu amor.
Um dia, mãe, um dia eu e
tu vamos voar sobre as gargalhadas desta linda cidade e esta cidade será a
nossa eterna sepultura.
Queria ser como elas.
Queria voar sob as estrelas que durante a noite desciam do Céu e deitavam-se
junto a mim, pegava-lhes na mão e adormecia até que acordava e dava-me conta
que estava junto ao mar, pertinho do tecto da alcofa, sentado sobre o triciclo
que em sonâmbulos soluços ia percorrendo todo o quintal até que quando me
aproximava do portão de entrada, o homem que puxava os machimbombos pelas ruas
da cidade, regressava, e com um beijo, fazia-me acreditar que todo aquele
silêncio se devia aos meus pequenos voos que durante a tarde fazia sobre as
sanzalas envenenadas de pequenos charcos de água. O odor a terra queimada
abraçava as minhas mãos…
(Francisco) o desejo de
quando os olhos são as estrelas de uma tarde de Domingo.
Um dia, um dia serei como
elas e fartei-me do mar que tinha desenhado no tecto da alcofa, um dia serei
como elas e fartei-me do pequeno radio a pilhas, um dia serei como elas e
fartei-me dos barcos e de ser o comandante de todos aqueles navios de insónia.
(Francisco) dois olhares
em desejo que apenas uma parede de silêncio consegue afugentar, e no pescoço, a
corda do poeta enforcado.
Os dedos esticados, o
papel sobre a mesa em delinquentes beijos que depois de eu adormecer,
desapareciam como tudo, desde que nasci.
E um dia serei como elas.
(Francisco) as tuas mãos
poisadas na sombra da minha mão, da algibeira retirava o mar que trouxera e que
durante alguns anos esteve desenhado no tecto da minha alcofa, e quando
acordei, todos os barcos da minha infância olhavam-me como me olharam quando me
viram pela primeira vez e pensavam que eu tinha regressado da lua ou do sol; tão
tristes, mãe, estão as flores do teu jardim e as primeiras gaivotas que me
ofereceste.
(Francisco) a paixão
tomou conta dele, vendeu a alma ao diabo e dizem que hoje habita numa ruela de
medo onde se senta numa pequena cadeira e de cigarro em cigarro, sonha com o
regresso das gaivotas. Um dia, um dia vou ser como elas.
A cidade despedia-se de
nós, e em pequenos milímetros de sombra, zarpamos em direcção aos búzios das
manhãs sem madrugada.
(Francisco) poisa a tua
cabeça no meu peito enquanto todos aqueles barcos aguardam o regresso do
comandante; à janela, uma flor que só a luz consegue desenhar no velho
mosqueteiro, percebe o que é a paixão.
Alijó, 24/11/2022
Francisco
(ficção)