Poucas coisas tínhamos para dizer,
(há dias assim, esquisitos, doentes, dias de
“merda” que eu vejo a aproximação de uma noite, também ela,
esquisita, doente, e de “merda”),
deixou de ter paz e sossego, depois de clarear a
manhã e de muitos milímetros quadrados de gotinhas de água,
lembrou-se que hoje era Sábado, e que hoje não necessitava de
levantar-se cedo, tomar banho apressadamente, o pequeno almoço em
soluços e o primeiro café ainda as moedas jazem na algibeira, hoje
Sábado não puxou pelo primeiro cigarro, pois precisamente hoje,
Sábado passaram dez meses que fumou o último cigarro, e
dizia ele,
é como o amor e a paixão, aos poucos vamos
esquecendo, tudo na vida podemos esquecer, não apagar como se
existisse um apagador que absorvesse o giz das coisas boas e das
coisas más que a vida constrói sobre a ponte metálica que
atravessa o rio da saudade, mas, depois, depois passados os enormes
segundos multiplicados pelos duodécimos do prazer, e
dizia ele que ainda ontem tinha tudo, e hoje, nada
lhe resta,
(eu sinceramente não acredito nas suas palavras,
porque nunca se tem tudo, e quando pensamos que temos, falta sempre
algo), mas isso é lá com ele e de aldrabão tem um pouco, como
todas as flores que vi e ouvi no jardim da casa dele,
poucas coisas existem concretamente para dizer,
que está a chover, mas isso não me é novidade,
cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do
que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros,
é a vida amigo Gonçalves digo-lho eu, confesso que
fica mais calmo, do tipo, deixa lá amigo, a minha casa também ardeu
toda, ou então?
também tal como tu estou encornado e não é isso
que me vai matar ou por isso vou deixar de viver, vamos mas é ao
tasco beber umas minis, uns vinhos tintos, e quem sabe, na volta do
correio, um novo amor apareça, como apareceram aquelas palavras que
descobriste na parede do sótão, ou
(que está a chover, mas isso não me é novidade,
cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do
que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
ou, poucas coisas tínhamos para dizer, e como
sempre haviam silêncios disfarçados de melódicos sons embrulhados
num fino pano de linho, ou
não quero,
eu respondia-lhe,
eu também deixei de querer,
e comecei a acreditar nas nuvens com braços e
pernas e corpos de mulher, e comecei a acreditar no vento que
empurram as nuvens com corpo de mulher para o cimo da montanha, onde
solitariamente, vive uma pedra com braços e pernas e também com
corpo de mulher, e comecei a acreditar nas palavras que começaram a
cair do céu, e comecei a acreditar que o mar
não tinha nada para me dizer,
e comecei a creditar que um vez por semana o mar
subia a montanha e com a sua salgada água ensanguentava as nuvens e
a pedra, com pernas e braços e corpos de mulher, e comecei a ver os
dias a entrarem dentro de um tubo de vácuo, e rodopiavam e
rodopiavam e rodopiavam
(que está a chover, mas isso não me é novidade,
cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do
que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
e rodopiavam até tropeçarem nas mentiras
inventadas pelos livros que só o Inverno consegue transformar em
lareira, estava frio, a nuvem e a pedra, com braços e pernas e
corpos de mulher começaram, também elas, a acreditar
(e quando muita gente começa a acreditar numa
mentira, quando chega o Sábado, já é uma verdade anunciada,
proclamada e publicada em livro branco que em todos as lápides
existe),
é assim a vida, amigo Gonçalves,
sabes?
não, diz,
vou ouvir um pouco de Fingertips e ler o livro de
Colette “Gigi” ou Bernardo Soares “Livro do Desassossego”, ou
em vez de ler, oiço apenas, ou aproveito e enquanto oiço, penso,
que
poucas coisas tínhamos para dizer, e no entanto,
chove torrencialmente na minha vida.
Francisco Luís Fontinha