sábado, 9 de março de 2013

Os ouros em fumo de cigarros

Poucas coisas tínhamos para dizer,
(há dias assim, esquisitos, doentes, dias de “merda” que eu vejo a aproximação de uma noite, também ela, esquisita, doente, e de “merda”),
deixou de ter paz e sossego, depois de clarear a manhã e de muitos milímetros quadrados de gotinhas de água, lembrou-se que hoje era Sábado, e que hoje não necessitava de levantar-se cedo, tomar banho apressadamente, o pequeno almoço em soluços e o primeiro café ainda as moedas jazem na algibeira, hoje Sábado não puxou pelo primeiro cigarro, pois precisamente hoje, Sábado passaram dez meses que fumou o último cigarro, e
dizia ele,
é como o amor e a paixão, aos poucos vamos esquecendo, tudo na vida podemos esquecer, não apagar como se existisse um apagador que absorvesse o giz das coisas boas e das coisas más que a vida constrói sobre a ponte metálica que atravessa o rio da saudade, mas, depois, depois passados os enormes segundos multiplicados pelos duodécimos do prazer, e
dizia ele que ainda ontem tinha tudo, e hoje, nada lhe resta,
(eu sinceramente não acredito nas suas palavras, porque nunca se tem tudo, e quando pensamos que temos, falta sempre algo), mas isso é lá com ele e de aldrabão tem um pouco, como todas as flores que vi e ouvi no jardim da casa dele,
poucas coisas existem concretamente para dizer,
que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros,
é a vida amigo Gonçalves digo-lho eu, confesso que fica mais calmo, do tipo, deixa lá amigo, a minha casa também ardeu toda, ou então?
também tal como tu estou encornado e não é isso que me vai matar ou por isso vou deixar de viver, vamos mas é ao tasco beber umas minis, uns vinhos tintos, e quem sabe, na volta do correio, um novo amor apareça, como apareceram aquelas palavras que descobriste na parede do sótão, ou
(que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
ou, poucas coisas tínhamos para dizer, e como sempre haviam silêncios disfarçados de melódicos sons embrulhados num fino pano de linho, ou
não quero,
eu respondia-lhe,
eu também deixei de querer,
e comecei a acreditar nas nuvens com braços e pernas e corpos de mulher, e comecei a acreditar no vento que empurram as nuvens com corpo de mulher para o cimo da montanha, onde solitariamente, vive uma pedra com braços e pernas e também com corpo de mulher, e comecei a acreditar nas palavras que começaram a cair do céu, e comecei a acreditar que o mar
não tinha nada para me dizer,
e comecei a creditar que um vez por semana o mar subia a montanha e com a sua salgada água ensanguentava as nuvens e a pedra, com pernas e braços e corpos de mulher, e comecei a ver os dias a entrarem dentro de um tubo de vácuo, e rodopiavam e rodopiavam e rodopiavam
(que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
e rodopiavam até tropeçarem nas mentiras inventadas pelos livros que só o Inverno consegue transformar em lareira, estava frio, a nuvem e a pedra, com braços e pernas e corpos de mulher começaram, também elas, a acreditar
(e quando muita gente começa a acreditar numa mentira, quando chega o Sábado, já é uma verdade anunciada, proclamada e publicada em livro branco que em todos as lápides existe),
é assim a vida, amigo Gonçalves,
sabes?
não, diz,
vou ouvir um pouco de Fingertips e ler o livro de Colette “Gigi” ou Bernardo Soares “Livro do Desassossego”, ou em vez de ler, oiço apenas, ou aproveito e enquanto oiço, penso, que
poucas coisas tínhamos para dizer, e no entanto, chove torrencialmente na minha vida.

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 8 de março de 2013

Mulheres a preto e branco

Ei-lo que se recusará a regressar antes que a ponte velhíssima de madeira se desmorone sobre as pálidas algas das tristes tardes de Inverno, ei-lo, o transeunte mais procurado dos Pinhais de Cima, aldeia pacata e silenciosa que cresceu, aos poucos como um cogumelo de areia, entre as rochas fragmentadas das cabeças ocas dos homens com pernas de cimento, enferrujado o aço, sobejaram algumas paisagens que um fotografo famoso guardou para a posteridade, algumas fotografias a preto e branco, porque ele sempre amou as fotografias a preto e branco e não se cansa de dizer que
São como as mulheres, belas,
Uma fotografia a preto e branco e uma mulher, ambas elas belas, e a diferença está no papel, a fotografia exibe um papel macio, cristalino e cintilante, e a mulher, exibe uma pele de sombras que caminham sobre as ondas cristas que a maré desenha nos desejos depois de partir o pôr-do-sol e antes de regressar a lua,
Ei-lo, o ausente mutante que acreditava nas palavras que lia, ei-lo agachado no pavimento húmido dos quartos reles de pensões miseráveis, e no entanto, ele, preferia as fotografias a preto e branco, e às mulheres, das mulheres recebia uma chave de carícia em formato de três por três e que tinha como objectivo abrir todos os corações mais secretos e encerrados das noites ilimitadas, quando a tangente de (x) tende para uma cama com lençóis de papel e um guarda-fato com um espelho onde se vê o círculo trigonométrico das mulheres de coração claustrofóbico, ele
Sou uma fotografia aparvalhada, vesti-me de palhaço, sem tenda de circo e apenas com uma roulote dei duas voltas à aldeia dos Pinhais de Cima, e desenha no invisível rectas, cubos, círculos, triângulos e meninas de chocolate,
Existem mulheres a preto e branco como fotografias com coxas transeuntes, e têm o coração tão fechado, tão fechado, que nem o amigo Rocha das Chaves consegue abri-los, coisas dos artistas, escritores e poetas, porque se eu tivesse a habilidade que ele tem para abrir fechaduras...
Meu Deus, quantos corações,
(paciência, cada um tem o seu ofício, e eu, não tenho nenhum)
E eu tenho muita, como as árvores, vou esperando que cessem todas as tempestades e que uma nuvem com recheio de amor desça às profundezas das masmorras onde se passeiam correntes e argolas e animais ferozes, a selva desceu à cidade, os rios fugiram para a montanha, e um ditador roubou-nos o mar, mas não nos importamos, já nos roubaram tantas coisas
Que
É mais uma, que diferença faz?
(este bloqueio vai estar activo durante mais 1 dia e 23 horas)
Que nascemos para vivermos sobre tempestades (só alguns) e que também (só alguns) são incapazes de abrir uma simples fechadura, ou
Arrombar a janela de paixão,
Ou levitar sobre os telhados dos Pinhais de Cima, vestido de domador de feras, porque começando por ele, há feras completamente indomáveis como o porteiro do edifício contiguo à repartição onde trabalha o Alfredo, o velho Alfredo que desde que me lembro espera e desespera pelo regresso
E ei-lo que se recusará a regressar antes que a ponte velhíssima de madeira se desmorone sobre as pálidas algas das tristes tardes de Inverno, ei-lo, o transeunte mais procurado dos Pinhais de Cima, aldeia pacata e silenciosa que cresceu, aos poucos como um cogumelo de areia, entre as rochas fragmentadas das cabeças ocas dos homens com pernas de cimento, enferrujado o aço, sobejaram algumas paisagens que um fotografo famoso guardou para a posteridade, algumas fotografias a preto e branco, porque ele sempre amou as fotografias a preto e branco e não se cansa de dizer que são como as mulheres, belas, e como as flores, ainda mais belas que as fotografias, mas
Menos belas que as mulheres a preto e branco.

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha


Poema de Francisco Luís Fontinha incluído na “Antologia de Poesia Contemporânea Vol. IV, Entre o Sono e o Sonho”.
A apresentação será no dia 16 de Março pelas 15:00 horas, no salão Preto e Prata do Casino Estoril.
Obrigado à Chiado Editora e ao Gonçalo Martins.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Desisti dos cabelos negros com olhos castanhos

Vou sonhando, vou, dentro das águas milenares que da fonte da inocência brotam, deixei de procurar-te, tal como deixei de me importar com o sal que a água transporta, e às escondidas, e
Vou
E sem saber que a vizinha que eu pensava existir apenas no espelho do guarda-fato, porque era naquele lugar que eu a encontrava todos os dias, hoje
Bateu-me à porta,
Procurou-me, e deixei de a procurar, desisti dos cabelos negros com olhos castanhos e pele cor de chocolate, bateram-me à porta, preparei-me para abrir, e ela parecendo uma rosa descida do pedestal do silêncio, murmurou-me, gritou-me, infernizou-me a paciência
O vizinho por acaso tem sal que me empreste? Respondi-lhe que não, que o único sal que disponho é o que transporta a água, e que me desculpasse mas estou com pressa, vou sair, preciso de sair desta casa
O vizinho é mesmo um rabugento e mal educado,
Pois sou, claro que sou, mas não fui eu que lhe bati à porta a pedir sal, fui?
É por essas e por outras que vai morrer só, E passei-me, e respondi-lhe deselegantemente que o facto de estar só não quer dizer que esteja só,
Ela
Não percebi,
Eu
Também não é para a senhora perceber e desculpe-me mas tenho de encerrar a porta, vá ao vizinho do segundo esquerdo, parece que esse tem sempre tudo,
Ele é o colesterol, ele é bicos de papagaio, ele é a próstata, ele é o esqueleto empenado..., talvez tenha sal, quem sabe?
Ela nunca me gramou, sempre me desculpou nas minha aventuras, mas eu sabia que fingia, e nunca me perdoou as fendas que deixei nas paredes da vida, ela nunca percebeu que eu apenas tenho alguns cachimbos e uns tantos livros, nada mais, e no entanto, bastantes CDS, considero-me um barco feliz, tenho asas, voo sobre os telhados das aldeias de zinco, quando quero, puxo da âncora e estaciono num qualquer banco de jardim,
“Cuidado, pintado de fresco”,
E quando percebo, zás..., o casco recheado de listras encarnadas, como um prisioneiro abandonado no cais do inferno, quando o rio se transforma em absorto desejo das entranhas algibeiras de prata, das mãos, incham os dedos coloridos com sabor a limão, e erguem-se-lhe do ventre as flores mortas que as noites se poisam nos seios de oiro clandestino,
Ouvia-te permaneceres sentada nas árvores anãs do jardim do sétimo andar direito, e um desejo de vidro sinto-o apaixonado pela janela que o homem de xisto e a mulher de socalco, deixaram embalsamada como as casas em ruínas da minha alegre vida,
As paredes de gesso, fendilhadas raízes sobre a terra queimada, o azul regressou hoje a casa, na boca trazia a dor de mais um dia passado em branco, junto a uma parede de cimento, vestido de preto, com um lindo chapéu de abas largas, o azul entranha-se-lhe no púbis como o mar quando sobe as escadas do abismo e desaparece entre telhas de vidro e chapas de miniatura com mistura de chocolate e amêndoa, e
Nunca vi uma mulher sentada sobre o mar, mas não invalida que não exista uma, uma apenas, porque também nunca tive o prazer de olhar um protão e ele existe
Vive nas recordações que a terra engole todas as quintas-feiras ao meio-dia, e como barco que era, fazia-se ao mar, tapava os ouvidos para não ouvir os lamentos da vizinha, porque
Umas vezes era o sal, outras, outras a salsa, outras, insignificâncias com as palavras que ele escrevia,
“Porque o que ela quer é peso”, o insignificante Alberto a preencher-me os ouvidos, e eu respondia-lhe És parvo pá, ela é doida, só isso, nada mais do que isso,
E escrevia, escrevia as parvoíces do dia como se fossem histórias de encantar, e de encantar, de encantar apenas os sons do relógio da torre da Igreja, vou sonhando, vou, dentro das águas milenares que da fonte da inocência brotam, deixei de procurar-te, tal como deixei de me importar com o sal que a água transporta, e às escondidas, e
Vou
E sem saber que a vizinha que eu pensava existir apenas no espelho do guarda-fato, porque era naquele lugar que eu a encontrava todos os dias, hoje
Bateu-me à porta,
E hoje descobri que vou...

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 6 de março de 2013

Do sabão em barra de antigamente

Pedi a todos os sons que se calassem e, cessou-se-lhe a respiração, vi, como se fossem uma nuvem de fogo, dois olhos a separarem-se de uma cabeça com caracóis loiros, dos lábios, um fino aroma a morango sobressaía e emergia do pequeno cadáver que Deus (como é costume dizer-se) tinha chamado até si,
Perguntava-me
Porquê ela?
Responderam-me que era a vontade de Deus, e eu, eu que nunca contrariei a vontade dele, mesmo discordando das suas leis, às vezes, egoístas, aceitei
E
Porquê ela?
Perguntava-me,
E porque não eu? Sim, podíamos trocar de posição, e em vez de ela adormecer eternamente no leito de lençóis bordados com flores e corações, poderia muito bem ser eu, eu no lugar dela, eu enroscado nos pedaços de cartão que arrebanhei do caixote do lixo, que todas as noites dorme na esquina da rua,
Porque eu, dizia ele, não faço falta,
E eu, não concordo, porque todos fazemos falta, mesmo os cadáveres indefesos, sem família, sem nada, mesmo esses, alguém sentirá a sua falta, e por isso proponho
A Associação dos Cadáveres Abandonados, com sede numa rua perdida dentro da cidade também ela perdida, uma cidade completa, com árvores e pássaros e barcos, e homens e mulheres
Que dormem embrulhados em pedaços de cartão,
(Pedi a todos os sons que se calassem e, cessou-se-lhe a respiração, vi, como se fossem uma nuvem de fogo, dois olhos a separarem-se de uma cabeça com caracóis loiros, dos lábios, um fino aroma a morango sobressaía e emergia do pequeno cadáver que Deus (como é costume dizer-se) tinha chamado até si),
E homens e mulheres, tristes e sós, vivos e obrigados a transportar um esqueleto desclassificado e não catalogado, alguns até, já perderam metade dos ossos, outros, outros tiverem e sentiram a necessidade de os venderem, e há sempre um oportunista à procura de pechinchas
Porque eu, dizia ele, não faço falta,
E eu, não concordo, porque todos fazemos falta, mesmo os cadáveres indefesos, sem família, sem nada, mesmo esses, alguém sentirá a sua falta, e por isso proponho, proponho-me a vestir-me de estátua e ficar eternamente num dos jardins a fotografar à distância o rio, também ele, um cadáver, triste como eu, alegre como ela,
A Associação dos Cadáveres Abandonados associa-se às pechinchas & pechinchas do senhor Manel Zé, cigano respeitado e honesto, criador de cavalos e comerciante na área dos fios de cobre, e quando tem algum tempo, dedica-se a fabricar ouros em casa, e diz que são como os originais, mas depois de os acariciarmos, notam-se-lhes os ossos, um esqueleto esquelético como os suspiros de amor que a mulher dele, a dona Maria dos Anéis transporta nas axilas, e lá fora chora-se a partida da querida Margarida com os seus loiros caracóis e que por dificuldades da própria vida decidiu ir para longe, muito longe, até que ninguém se lembre dela,
E homens e mulheres, tristes e sós, vivos e obrigados a transportar um esqueleto desclassificado e não catalogado..., como os cortinado pesadíssimos, negros, que encerram as janelas da paixão, escondem as flores verdadeiras, enquanto as outras, de papel, fingem orgasmos nas asas das abelhas entre margens de um rio doente, pestilento, ofegante, ouviam-se-lhes as garras a atingirem as mandíbulas dos triciclos de aço, mabecos em fúria num País desorganizado e amedrontado, e diziam-me que no capim viviam sonhos
Rebolava-me sobre ele, escavava cavernas e inventava guerras com soldados de borracha, e juro
Nunca vi e senti, um sonho, portanto
Mentiram-me,
Mentiram-me como me mentiram quando me disseram que foi Deus que a escolheu, quando hoje sei, tenho a certeza, que ele, ele não tem paciências nem forças nem vontade
De se meter nessas coisas,
Mesquinhices de mulheres do soalheiro, escadas sem patamar semeadas por velhas, que esperam, esperam pela chegada do campanário, da chama iluminada de palavras, e depois de um crucifixo enferrujado atravessar durante a noite o rio dos Desgostos, elas, coitadas, ainda acreditam no poder
Do sabão em barra de antigamente,
E claro que ele não se mete nessas coisas, ele não é de mexericos, do disse que não disse, e certamente terá muito mais em que pensar, olha por exemplo
Como irá ele resolver o problema das infiltrações que estão a afectar severamente o sótão, e alguns dos livros já se encontram misturados numa penumbra húmida com listras verdes e amarelas e negras, outros deles, intactos, e até parece que nada lhe acontece, saúde de ferro como o bisavô António, sentado na eira a enrolar cigarros só com uma mão e a contar-me histórias da Primeira guerra Mundial, coitado, coitados deles, dos vivos, dos mortos e dos que cá chegaram transportando um esquelético esqueleto onde já se notava a falta de alguns ossos, talvez os tenham trocado por comida, ou
Perdidos pelos campos imensos e desconhecidos,
Eles regressaram, ele regressou,
E encontrou uma junta de bois mais esquelética do que ele e do que alguns dos seus camaradas, como é cruel a vida, e os chamamentos com as inexplicáveis cartas de chamada, hoje
Senhor Francisco?
Sim, sou eu,
Acaba de ser contemplado com uma viagem para o Além...
E Pergunto-me
Porquê, Porquê eu?

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 5 de março de 2013

À procura do mar

Carlota Maria acordara com o barulho ensurdecedor que o vento provocava nos braços de Alberto, dentro dela, Humberto, cavaleiro, passeava-se de armadura de papel e montado no seu cavalo de oiro com finos olhos de porcelana, recordava os tempos infinitos vividos numa guerra inventada, num País inventado, onde todos os dias era Inverno, uma criança brincava junto aos pés de Alberto, empoleirava-se num triciclo com assento em madeira e velhos ferros das intempéries chuvosas alicerçadas às raízes que faziam estremecer o coitado do Alberto,
De vez em quando, Alberto balançava as grandessíssimas mãos de ébano sobre os cabelos movediços de Carlota Maria, ela
Vestia-se simplesmente, tinha olhos que pareceriam diamantes e da boca ouviam-se-lhe os gemidos dos gonzos que suspendiam os dentes em marfim, nas traseiras, a criança com uma vara metálica procurava o mar, Alberto fingia que dormia, enquanto dentro da Carlota Maria um silêncio de prata começava a clarear, percorrendo cada milímetro dela, o menino gritava por ela
Ela, docemente nos abraços do cavaleiro, não a ouvia, e se a ouvia, fazia ouvidos de marcador, e eu, eu permanecia sentado, alguns metros de distância de Carlota Maria, percebi que havia um menino em cima de um triciclo e que procurava o mar, como um outro menino, num outro continente, que tanto procurou o mar que se cansou, e hoje
Não consigo ouvir, ler, nada, a palavra mar,
Ela dançava com as mãos poisadas na cintura de sílabas mortas, e quando o cavaleiro Humberto entrava dentro dela com toda a sua fúria, ela
Chorava,
Ela chamava pelo Alberto, mas este, entretido com o menino do triciclo pensava;
E quando eu morrer?
O que será do menino? O que vai acontecer à Carlota Maria?
Ela gemidamente estremecia com os soluços do cavalo, e o mar nunca apareceu,
E quando eu e a Carlota Maria e o Humberto e o menino, todos, morrermos? O que será do narrador sentado no muro de xisto a cerca de cem metros de nós...
Ela, docemente nos abraços do cavaleiro, não a ouvia, e se a ouvia, fazia ouvidos de marcador, e eu, eu permanecia sentado, alguns metros de distância de Carlota Maria, percebi que havia um menino em cima de um triciclo e que procurava o mar, como um outro menino, num outro continente, que tanto procurou o mar que se cansou, e hoje sons estranhos dentro de mim, o medo,
O Alberto tem medo de voar, Carlota Maria adora voar mas apenas se com ela for o cavaleiro Humberto e o seu cavalo de palha, e o menino
Não sei, prefiro o mar e todos os barcos que brincam no seu ventre, como os bebés, antes de nascerem, comunicam através de sons, ténues limas de luz, poucos os percebem, mas sei que um dia alguém vai pegar no menino e partir, e apenas ficará um velho triciclo com um apodrecido assento em madeira,
E sinto-o, o medo
O Alberto pálido agacha-se e embrulha o menino nos braços, Carlota Maria sorri aos encantos do cavaleiro Humberto, e eu, eu sentado no muro de xisto a contemplar a feliz Driamara, leve como as penas das gaivotas que andam à boleia nos mastros dos barcos com bandeiras capazes de comerem as palavras do querido Alberto que de um feixe de iões se materializam contra uma parede de vidro,
O medo de voar e perdermos tudo o que temos, e amemos, e perdermos o silêncio húmido das tardes de Primavera, vestia-se simplesmente, tinha olhos que pareceriam diamantes e da boca ouviam-se-lhe os gemidos dos gonzos que suspendiam os dentes em marfim, nas traseiras, a criança com uma vara metálica procurava o mar, e o menino pela madrugada em gritos sussurrantes
Pai, Pai Pai,
Sim filho,
Tenho medo,
Medo? De que tens medo meu querido filho!
Sonhei com uma casa que se chamava Carlota Maria, dentro dela andava um cavaleiro com uma armadura de papel, o cavalo era lindo
Mas tive medo,
E nas traseiras da casa havia um sobreiro que se chamava Alberto, e em frente a eles um homem com um chapéu estranho, fumava cigarros e sentava-se no muro de xisto, havia ervas, pássaros, e só me lembro que eu brincava com um triciclo à procura do mar como uma vara metálica,
Não achas este sonho estranho, Mãe?
Driamara responde-lhe que os sonhos era assim, às vezes estranhos, longe, muito longe, como os dias debaixo das nuvens felizes e infelizes, apaixonadas e não apaixonadas, todas, e sinto-o, o medo
O Alberto pálido agacha-se e embrulha o menino nos braços...
E as marés em sofrimento dos longínquos corredores das planícies inventadas, tal como as guerras, numa tela de gesso com acrílicos mergulhados em quatro simples paredes de amêndoa. E de todos, apenas senti pelo pelo Humberto.

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 4 de março de 2013

A rosa em segredo

Um dia hoje indesejado, indigesto, com algum sabor a queimado, um dia de chuva mergulhado em línguas de seda e plumas, ouvi pela primeira vez os sons coloridos das amendoeiras, senti, sem ti, sentindo no final da tarde a ruína dos alicerces de espuma da sustentação dos barcos em recreio, no átrio da escola, à janela
Parecia-me que os telhados da aldeia ardiam na febre dos relógios quando provocam nas pedras a lenta morte como sentia, e deixamos de sentir, as algibeiras recheadas de moedas com um furo no centro geométrico, que neste caso, coincide com o centro de massa, e dizias-me que das flores belas e menos belas, cresciam as bailarinas, ouvíamos o movimento circular uniformemente acelerado, subindo, e descendo, as escadas para a Primavera, e, eu
Não queria ir à janela, e à janela vimos as migalhas de pão que sobejaram do lanche, e um mês depois estavas grávida, e eu, sentia, sem ti, senti, e eu sentia os enjoos matinais, como as gaivotas quando poisavam em cima da mesa da sala, líamos no sofá meio cambaleado, trôpego, meio embriagado pelo silêncio da velha casa, recheada de fendas nas paredes de gesso, e ambos
Vómitos matinais,
Eu deixava de voar entre os ferrosos poste de iluminação, uma balança pesava-nos e a árvore que tínhamos no centro da cozinha começava a dar sinal de fadiga, a loucura aos poucos entrava na casa que diziam ser nossa, que eu afirmava não conhecer, e tu
Vómitos
E ambos tínhamos formas geométricas nas mãos gretadas devido ao frio invernal, descíamos ao inferno depois da meia-noite, e tu embrulhada nos vómitos matinais, e curiosamente, eu, tu, nuca vimos o rebento florido da rosa em segredo, uma noite extingui-se e afundou-se nos rochedos nas traseiras da nossa velha e encantada casa dos libertinos sonos de aranha, um corda, um sindicato e cartazes suspensos no corredor, um revoltado encornado com sabor a chocolate quente, e víamos, e sentíamos, e tínhamos
NADA,
ABSOLUTAMENTE NADA, NUNCA O TIVEMOS, NUNCA O DESEJAMOS,
E tínhamos vómitos matinais com sorrisos de areia,
Ou
E
Talvez percebas a maldade de uma janela com fotografia a preto e branco para o mar, quereres ver as árvores nascidas durante a noite, e o que vês?
Espuma e sons circunflexos, apaixonados, perdidamente em círculos como o pôr-do-sol mesmo sabendo que ele hoje não acordou, e provavelmente, talvez um dia percebas, percebas-me, como é difícil caminhar sobre os carris e olhar, lá longe, quase no infinito, o silêncio da luz,
Desistes então?
Não sei, não sei...
- Um dia hoje indesejado, indigesto, com algum sabor a queimado, um dia de chuva mergulhado em línguas de seda e plumas, ouvi pela primeira vez os sons coloridos das amendoeiras, senti, sem ti, sentindo no final da tarde a ruína dos alicerces de espuma da sustentação dos barcos em recreio, no átrio da escola, à janela, as canções melódicas do desejo hoje não apareceram, e as poucas palavras que encontrei em voos na casa de banho, também elas tristes, também elas distantes de mim, de ti, ou de si, conforme o tratamento, conforme a idade, ou o sentimento, e se eu amar loucamente um pedaço de cartão com uma simples palavras, uma palavra sem significado, suponhamos
Eu amo loucamente um pedaço de cartão onde alguém escreveu “hoje sou feliz”, e se eu trocar a janela por uma folha de papel em branco, e simplesmente olhá-la até me fartar,
Será isso um crime que me levará à pena capital?
E enquanto a paisagem da janela é sempre a mesma, na folha de papel em branco poderei escrever histórias, desenhar objectos, resolver complexas equações matemáticas, posso e devo
Desenhar um coração com pontas de aço,
Porque não?
Pego no copo, pego na escova de dentes e no dentífrico e, vou-me embora, vou, e sinto, sem ti, senti as clarabóias do destino estilhaçarem-se com o peso das pombas de papel, e um perfume de solidão desce em pedacinhos de milímetro até embater nos vidros opacos da vida clandestina, fingida, e aí sim
Porque não?
Sim, talvez percebas a maldade de uma janela com fotografia a preto e branco para o mar, quereres ver as árvores nascidas durante a noite, e o que vês?
(E um mês depois dizias-me que estavas grávida, e, eu, e eu, sem ti, senti, e eu sentia os enjoos matinais das árvores pintadas de encarnado e de olhos verdejantes, e um mês depois dizias-me que as gaivotas estavam loucas, porque uns dias sorriam, e outros, outros suicidavam-se de encontro aos mastros de aço dos barcos moribundos).

(ficção, não revisto)
@Francisco Luís Fontinha