É impossível viver-se assim, não concordas
comigo?
(meia dúzia de gargantas contra as lajes do vento,
três ou quatro mãos arremessando pedras da calçada na direcção
da casa amarela da rua escura que tem uma árvore caquética, com
dois ou três bancos de jardim, envelhecidos como o povo, como os
barcos, como os pássaros que assistem pacientemente à ditadura do
dinheiro, morre-se, matam-se, suicidam-se nuvens não percebendo que
o futuro é uma sepultura com pedra mármore em cima, cansamos-nos de
ouvir tantos e tantos comentadores, que tudo comentam, que nada
percebem daquilo que comentam, hoje a receita é uma, amanhã já é
outra, e talvez, depois de amanhã, não sei, apreça um que diga que
a solução é o peru recheado com batatinhas doiradas, caseiras, o
peru, caseirinho, as delícias da avó Silvina, e hoje),
Percebes o que eu quero dizer-te?
(hoje ofereceram-me catorze ovos, caseiros, e sou
levado a concluir que o dia não está a ser assim tão horrível,
como eu pensava, ao acordar, depois recebo a notícia que vai ser
editado pela Fundação José Saramago um novo livro “A estátua e
a pedra” de José Saramago, e confesso, neste momento da minha
vida, digo-o e repito-o
estou a cagar-me se a barraca vai ou não vai
abaixo, que estou a cagar-me se a tenda frágil deste circo vai ou
não vai ruir, porque
hoje deram-me catorze ovos, se comer um por cada
jantar, tenho catorze jantares garantidos, mais uma laranjas que a
velhinha me ofereceu, poderei dizer que
hoje até que nem foi um dia assim tão horrível,
chato, não, não,
é impossível viver-se assim, não concordas
comigo?)
Nós aguentamos, nós somos como os plátanos, na
minha terra adoptiva existe um plátano com cerca de cento e
cinquenta e sete anos
E ele
Aguenta, e ele, e ele tem aguentado tudo, tormentas,
tempestades, velórios irrisórios, vestimentas de areia, ditaduras,
e omissões marítimas, e ele
Aguenta, sempre, hirto, um pouco obeso, é normal
para a idade, mas tirando isso
Aguenta, tudo,
(meia dúzia de gargantas contra as lajes do vento,
três ou quatro mãos arremessando pedras da calçada na direcção
da casa amarela da rua escura que tem uma árvore caquética, com
dois ou três bancos de jardim, envelhecidos como o povo, como os
barcos, como os pássaros que assistem pacientemente à ditadura do
dinheiro, morre-se, matam-se, suicidam-se nuvens não percebendo que
o futuro é uma sepultura com pedra mármore em cima, e dizem que o
futuro somos nós
nós, quem?
os esqueletos recheados de fome?
ou
os vampiros da morte, os pedintes novos caminheiros
caminhando sobre as rodas circulares das ameixas em flor, hoje foram
catorze ovos, e amanhã? E se amanhã não existir amanhã? Porque o
peru deixou de ser caseiro, ou
Porque as batatinhas deixaram de ser caseirinhas, e
das nuvens, nem água, nem incenso, nem
não
nem as planícies dos triângulos azuis que voam
sobre as tardes de neblina, tenho vergonha mãe, dizias-me tu quando
calçavas as botas com os dentes de fora, de beiços aguçados, ou
tenho vergonha mãe
quando as calças tinha as joelheiras rotas, e
tínhamos o couro que servia como remendo e como adereço,
e),
Não sei, diziam-me que aqui havia uma ilha com
rochas que falavam, juro, percorri todas as montanhas e rochas
nenhumas, quanto mais falarem, e como precisávamos de conversar,
olharmos-nos, os meus olhos nos teus olhos, que confesso e não me
leves a mal, nunca soube de que cor são, digo-o, para mim passam a
ser encarnados com bolinhas brancas, e hoje
Catorze ovos, caseiros, catorze jantares
assegurados, laranjas para sobremesa, música, e que nunca nos faltem
as pilhas para o rádio, nunca
Porque sem música
Morríamos, deixávamos de dançar sobre as
cristalinas ondas de sono, e tu vinhas a perceber que a noite é uma
mentira com cortinados de luar,
(não sei o que faça, não sei se amanhã terei
força para me erguer, reerguer, gritar, chorar, e acredita, estou
calmo, não estou nervoso e não sinto a falta dos cigarros, mas
hoje
e amanhã?
e
depois de amanhã?
Não sei
talvez cresçam e floresçam as inventadas flores
que colocamos sobre a pedra mármore das velhas e novas sepulturas,
com janelas, com clarabóias, e enxadas de vidro nas mãos calejadas
dos homens vestidos de árvores, com três ou quatro pássaros
poisados na cabeça, esse homem, esse desgraçado homem,
é ele
sou eu)
Adormeci um dia sem perceber que as manhãs são
mesas de madeira com toalhas de plástico; como está tudo isto?
Uma merda, uma grande merda.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha