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segunda-feira, 18 de março de 2013

Claro que não percebes que há olhares invisíveis

É impossível viver-se assim, não concordas comigo?
(meia dúzia de gargantas contra as lajes do vento, três ou quatro mãos arremessando pedras da calçada na direcção da casa amarela da rua escura que tem uma árvore caquética, com dois ou três bancos de jardim, envelhecidos como o povo, como os barcos, como os pássaros que assistem pacientemente à ditadura do dinheiro, morre-se, matam-se, suicidam-se nuvens não percebendo que o futuro é uma sepultura com pedra mármore em cima, cansamos-nos de ouvir tantos e tantos comentadores, que tudo comentam, que nada percebem daquilo que comentam, hoje a receita é uma, amanhã já é outra, e talvez, depois de amanhã, não sei, apreça um que diga que a solução é o peru recheado com batatinhas doiradas, caseiras, o peru, caseirinho, as delícias da avó Silvina, e hoje),
Percebes o que eu quero dizer-te?
(hoje ofereceram-me catorze ovos, caseiros, e sou levado a concluir que o dia não está a ser assim tão horrível, como eu pensava, ao acordar, depois recebo a notícia que vai ser editado pela Fundação José Saramago um novo livro “A estátua e a pedra” de José Saramago, e confesso, neste momento da minha vida, digo-o e repito-o
estou a cagar-me se a barraca vai ou não vai abaixo, que estou a cagar-me se a tenda frágil deste circo vai ou não vai ruir, porque
hoje deram-me catorze ovos, se comer um por cada jantar, tenho catorze jantares garantidos, mais uma laranjas que a velhinha me ofereceu, poderei dizer que
hoje até que nem foi um dia assim tão horrível, chato, não, não,
é impossível viver-se assim, não concordas comigo?)
Nós aguentamos, nós somos como os plátanos, na minha terra adoptiva existe um plátano com cerca de cento e cinquenta e sete anos
E ele
Aguenta, e ele, e ele tem aguentado tudo, tormentas, tempestades, velórios irrisórios, vestimentas de areia, ditaduras, e omissões marítimas, e ele
Aguenta, sempre, hirto, um pouco obeso, é normal para a idade, mas tirando isso
Aguenta, tudo,
(meia dúzia de gargantas contra as lajes do vento, três ou quatro mãos arremessando pedras da calçada na direcção da casa amarela da rua escura que tem uma árvore caquética, com dois ou três bancos de jardim, envelhecidos como o povo, como os barcos, como os pássaros que assistem pacientemente à ditadura do dinheiro, morre-se, matam-se, suicidam-se nuvens não percebendo que o futuro é uma sepultura com pedra mármore em cima, e dizem que o futuro somos nós
nós, quem?
os esqueletos recheados de fome?
ou
os vampiros da morte, os pedintes novos caminheiros caminhando sobre as rodas circulares das ameixas em flor, hoje foram catorze ovos, e amanhã? E se amanhã não existir amanhã? Porque o peru deixou de ser caseiro, ou
Porque as batatinhas deixaram de ser caseirinhas, e das nuvens, nem água, nem incenso, nem
não
nem as planícies dos triângulos azuis que voam sobre as tardes de neblina, tenho vergonha mãe, dizias-me tu quando calçavas as botas com os dentes de fora, de beiços aguçados, ou
tenho vergonha mãe
quando as calças tinha as joelheiras rotas, e tínhamos o couro que servia como remendo e como adereço,
e),
Não sei, diziam-me que aqui havia uma ilha com rochas que falavam, juro, percorri todas as montanhas e rochas nenhumas, quanto mais falarem, e como precisávamos de conversar, olharmos-nos, os meus olhos nos teus olhos, que confesso e não me leves a mal, nunca soube de que cor são, digo-o, para mim passam a ser encarnados com bolinhas brancas, e hoje
Catorze ovos, caseiros, catorze jantares assegurados, laranjas para sobremesa, música, e que nunca nos faltem as pilhas para o rádio, nunca
Porque sem música
Morríamos, deixávamos de dançar sobre as cristalinas ondas de sono, e tu vinhas a perceber que a noite é uma mentira com cortinados de luar,
(não sei o que faça, não sei se amanhã terei força para me erguer, reerguer, gritar, chorar, e acredita, estou calmo, não estou nervoso e não sinto a falta dos cigarros, mas
hoje
e amanhã?
e
depois de amanhã?
Não sei
talvez cresçam e floresçam as inventadas flores que colocamos sobre a pedra mármore das velhas e novas sepulturas, com janelas, com clarabóias, e enxadas de vidro nas mãos calejadas dos homens vestidos de árvores, com três ou quatro pássaros poisados na cabeça, esse homem, esse desgraçado homem,
é ele
sou eu)
Adormeci um dia sem perceber que as manhãs são mesas de madeira com toalhas de plástico; como está tudo isto?
Uma merda, uma grande merda.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha