sábado, 9 de março de 2013

A fuga inventada


Inventei distâncias para fugir de ti
criei dentro de mim
personagens invisíveis
bonecos e bonecas em pura porcelana
vivi menti
como um agarrado jardim
às árvores comestíveis
dos corpos mortos na lareira chama,

Como me arrependo das caminhadas pela montanha
comendo ervas daninhas
ou aguentando o castigado castigo
do homem com cabeça de vidro
dormíamos inventando prazeres
e pequenos gemidos
que a noite engolia
e o dia
o querido dia transpirava
vomitava
contra as ardósias das ruas em desalinho
dentro de mim invenção da manhã doente e sonolenta,

Inventei o coração de prata
e o orgasmo matinal
inventei os relógios de sol
e os telhados de lata,

Inventei distâncias para fugir de ti
desenhei versos de amor
nas parede insolentes
dos corpos com colares de iodo
inventei a loucura
e as enfermarias onde acorrentam Marias
e a mim
que inventei as árvores com folhas de papel...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Os ouros em fumo de cigarros

Poucas coisas tínhamos para dizer,
(há dias assim, esquisitos, doentes, dias de “merda” que eu vejo a aproximação de uma noite, também ela, esquisita, doente, e de “merda”),
deixou de ter paz e sossego, depois de clarear a manhã e de muitos milímetros quadrados de gotinhas de água, lembrou-se que hoje era Sábado, e que hoje não necessitava de levantar-se cedo, tomar banho apressadamente, o pequeno almoço em soluços e o primeiro café ainda as moedas jazem na algibeira, hoje Sábado não puxou pelo primeiro cigarro, pois precisamente hoje, Sábado passaram dez meses que fumou o último cigarro, e
dizia ele,
é como o amor e a paixão, aos poucos vamos esquecendo, tudo na vida podemos esquecer, não apagar como se existisse um apagador que absorvesse o giz das coisas boas e das coisas más que a vida constrói sobre a ponte metálica que atravessa o rio da saudade, mas, depois, depois passados os enormes segundos multiplicados pelos duodécimos do prazer, e
dizia ele que ainda ontem tinha tudo, e hoje, nada lhe resta,
(eu sinceramente não acredito nas suas palavras, porque nunca se tem tudo, e quando pensamos que temos, falta sempre algo), mas isso é lá com ele e de aldrabão tem um pouco, como todas as flores que vi e ouvi no jardim da casa dele,
poucas coisas existem concretamente para dizer,
que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros,
é a vida amigo Gonçalves digo-lho eu, confesso que fica mais calmo, do tipo, deixa lá amigo, a minha casa também ardeu toda, ou então?
também tal como tu estou encornado e não é isso que me vai matar ou por isso vou deixar de viver, vamos mas é ao tasco beber umas minis, uns vinhos tintos, e quem sabe, na volta do correio, um novo amor apareça, como apareceram aquelas palavras que descobriste na parede do sótão, ou
(que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
ou, poucas coisas tínhamos para dizer, e como sempre haviam silêncios disfarçados de melódicos sons embrulhados num fino pano de linho, ou
não quero,
eu respondia-lhe,
eu também deixei de querer,
e comecei a acreditar nas nuvens com braços e pernas e corpos de mulher, e comecei a acreditar no vento que empurram as nuvens com corpo de mulher para o cimo da montanha, onde solitariamente, vive uma pedra com braços e pernas e também com corpo de mulher, e comecei a acreditar nas palavras que começaram a cair do céu, e comecei a acreditar que o mar
não tinha nada para me dizer,
e comecei a creditar que um vez por semana o mar subia a montanha e com a sua salgada água ensanguentava as nuvens e a pedra, com pernas e braços e corpos de mulher, e comecei a ver os dias a entrarem dentro de um tubo de vácuo, e rodopiavam e rodopiavam e rodopiavam
(que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
e rodopiavam até tropeçarem nas mentiras inventadas pelos livros que só o Inverno consegue transformar em lareira, estava frio, a nuvem e a pedra, com braços e pernas e corpos de mulher começaram, também elas, a acreditar
(e quando muita gente começa a acreditar numa mentira, quando chega o Sábado, já é uma verdade anunciada, proclamada e publicada em livro branco que em todos as lápides existe),
é assim a vida, amigo Gonçalves,
sabes?
não, diz,
vou ouvir um pouco de Fingertips e ler o livro de Colette “Gigi” ou Bernardo Soares “Livro do Desassossego”, ou em vez de ler, oiço apenas, ou aproveito e enquanto oiço, penso, que
poucas coisas tínhamos para dizer, e no entanto, chove torrencialmente na minha vida.

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 8 de março de 2013

Mulheres a preto e branco

Ei-lo que se recusará a regressar antes que a ponte velhíssima de madeira se desmorone sobre as pálidas algas das tristes tardes de Inverno, ei-lo, o transeunte mais procurado dos Pinhais de Cima, aldeia pacata e silenciosa que cresceu, aos poucos como um cogumelo de areia, entre as rochas fragmentadas das cabeças ocas dos homens com pernas de cimento, enferrujado o aço, sobejaram algumas paisagens que um fotografo famoso guardou para a posteridade, algumas fotografias a preto e branco, porque ele sempre amou as fotografias a preto e branco e não se cansa de dizer que
São como as mulheres, belas,
Uma fotografia a preto e branco e uma mulher, ambas elas belas, e a diferença está no papel, a fotografia exibe um papel macio, cristalino e cintilante, e a mulher, exibe uma pele de sombras que caminham sobre as ondas cristas que a maré desenha nos desejos depois de partir o pôr-do-sol e antes de regressar a lua,
Ei-lo, o ausente mutante que acreditava nas palavras que lia, ei-lo agachado no pavimento húmido dos quartos reles de pensões miseráveis, e no entanto, ele, preferia as fotografias a preto e branco, e às mulheres, das mulheres recebia uma chave de carícia em formato de três por três e que tinha como objectivo abrir todos os corações mais secretos e encerrados das noites ilimitadas, quando a tangente de (x) tende para uma cama com lençóis de papel e um guarda-fato com um espelho onde se vê o círculo trigonométrico das mulheres de coração claustrofóbico, ele
Sou uma fotografia aparvalhada, vesti-me de palhaço, sem tenda de circo e apenas com uma roulote dei duas voltas à aldeia dos Pinhais de Cima, e desenha no invisível rectas, cubos, círculos, triângulos e meninas de chocolate,
Existem mulheres a preto e branco como fotografias com coxas transeuntes, e têm o coração tão fechado, tão fechado, que nem o amigo Rocha das Chaves consegue abri-los, coisas dos artistas, escritores e poetas, porque se eu tivesse a habilidade que ele tem para abrir fechaduras...
Meu Deus, quantos corações,
(paciência, cada um tem o seu ofício, e eu, não tenho nenhum)
E eu tenho muita, como as árvores, vou esperando que cessem todas as tempestades e que uma nuvem com recheio de amor desça às profundezas das masmorras onde se passeiam correntes e argolas e animais ferozes, a selva desceu à cidade, os rios fugiram para a montanha, e um ditador roubou-nos o mar, mas não nos importamos, já nos roubaram tantas coisas
Que
É mais uma, que diferença faz?
(este bloqueio vai estar activo durante mais 1 dia e 23 horas)
Que nascemos para vivermos sobre tempestades (só alguns) e que também (só alguns) são incapazes de abrir uma simples fechadura, ou
Arrombar a janela de paixão,
Ou levitar sobre os telhados dos Pinhais de Cima, vestido de domador de feras, porque começando por ele, há feras completamente indomáveis como o porteiro do edifício contiguo à repartição onde trabalha o Alfredo, o velho Alfredo que desde que me lembro espera e desespera pelo regresso
E ei-lo que se recusará a regressar antes que a ponte velhíssima de madeira se desmorone sobre as pálidas algas das tristes tardes de Inverno, ei-lo, o transeunte mais procurado dos Pinhais de Cima, aldeia pacata e silenciosa que cresceu, aos poucos como um cogumelo de areia, entre as rochas fragmentadas das cabeças ocas dos homens com pernas de cimento, enferrujado o aço, sobejaram algumas paisagens que um fotografo famoso guardou para a posteridade, algumas fotografias a preto e branco, porque ele sempre amou as fotografias a preto e branco e não se cansa de dizer que são como as mulheres, belas, e como as flores, ainda mais belas que as fotografias, mas
Menos belas que as mulheres a preto e branco.

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha


Poema de Francisco Luís Fontinha incluído na “Antologia de Poesia Contemporânea Vol. IV, Entre o Sono e o Sonho”.
A apresentação será no dia 16 de Março pelas 15:00 horas, no salão Preto e Prata do Casino Estoril.
Obrigado à Chiado Editora e ao Gonçalo Martins.