quarta-feira, 12 de junho de 2013

Tínhamos um bibe com pintinhas

foto: A&M ART and Photos

Ouvíamos as poucas migalhas que a insónia deixava em nós como acontecia com os candeeiros em alumínio debaixo da nossa janela da casa de banho, durante a noite um corredio de chinelos entre o corredor e o Hall de entrada, que muitas das vezes, a porta ficava num estado de medo, assustava-se o corrimão de acesso ao nosso andar, e nunca percebemos a razão de tanta desgraça, e se havia fome entre as caixilharias, nunca o percebemos,
Os cobertores e os espelhos da velha escada de madeira, dormiam já, eu e ela, de mão dada, tropeçávamos nas sombras que do penumbro silêncio vindo da clarabóia ia aos poucos desenhando círculos de luz no gesso em pequenas frestas que nos conduziriam até ao terceiro andar, embriagados, nós, cambaleávamos como trapezistas sobre um arame que atravessava a rua não muito larga, em frente à casa onde tínhamos um quarto alugado, havia uma igreja, ante de introduzir a chave na ranhura da fechadura, benzia-me, e perdia a Deus que me acompanhasse na derradeira viagem sobre a noite até a um quarto com uma velha cama estreita e sem janela, e um vidro sobre uma chaminé invertida, mostrava-me o céu quando rompia a manhã,
Éramos crianças com bibe no recreio da escola, quando chegava a casa, acompanhava-me a comichão do bichos do velho pinheiro, e do outro lado da rua, mesmo em frente à escola, tínhamos o mar, o cais ficava a uns quinhentos metros, e eu, em vez de olhar a professora com as explicações de geometria, preferia contemplar a felicidade dos barcos, apreciava-lhes a liberdade, e sobre o oceano, ninguém, ninguém lhes interrompia os grandes voos de gaivota de motor a diesel,
Subíamos encostados aos cordéis das esplanadas da calçada inclinada, ombro com ombro, eu amparava-te, e tu, imaginavas segurar-me a mão como dálias do mesmo canteiro olhando o sol, em pedaços de milímetro desperdiçados nos paralelos solitários, pegava-te e erguia-te, e já dentro do pequeno cubículo, despia-te, e ficava assim..., como quem observa uma tela acabada de pintar, olhava-te, e no teu corpo, escrevia poesia com o meu olhar, e com as minhas mãos, desenhava-te o mar, sentia-te respirar e sabia que estavas viva, dormias, sonhavas com carcaças de velhos petroleiros deambulando durante a noite corredor fora, debaixo de nós ouvíamos o bater de asas dos barcos em pequenos voos rasantes, éramos novos ainda
Tínhamos um bibe com pintinhas,
Brincávamos no recreio, ouvíamos as poucas migalhas que a insónia deixava em nós como acontecia com os candeeiros em alumínio debaixo da nossa janela da casa de banho, durante a noite um corredio de chinelos entre o corredor e o Hall de entrada, que muitas das vezes, a porta ficava num estado de medo, assustava-se o corrimão de acesso ao nosso andar, e nunca percebemos a razão de tanta desgraça, e se havia fome entre as caixilharias, nunca o percebemos, como hoje, não percebo o teu nome murmurado enquanto dormes, e apenas sei que o teu cabelo ocupa a minha almofada, alimenta-se dela, vive nela, como viviam as palavras engasgadas da tua garganta recheada com melódicas canções e poemas por declamar,
Estávamos no recreio, sentia a tua voz, éramos do tempo do Bar um (em Vila Real) e os dois, de bibe, ficávamos até que toda a gente se evaporasse, até que tu e eu ficávamos frente a frente, mergulhados em vapores de iodo, como velhos sonhos em velhas camas, elas, rangiam, e percebíamos que dos orgasmos delas, uma apenas almofada, guardava o perfume do teu cabelo,
A professora chamava-nos, saíamos do Bar Um e voltávamos às lições de geometria, e um dia, aprendemos que o teu corpo era como os poemas de AL Berto; quantas mais vezes os líamos, mais apetecido ele era, é, e hoje, nós, sem os bibes, limitamos-nos a
Olá, estás bom?
Olá, como estás!
Vou, vou andando...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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