quinta-feira, 16 de maio de 2013

Uma louca mulher e silêncios homens de Francisco Luís Fontinha

foto: A&M ART and Photos

As personagens coabitam na maternidade dos sonhos, vivem e dormem, ambas, dentro de um exíguo espaço do tamanho de uma algibeira minguada, penumbra e vazia, imagino-os colados ao tecido onde provavelmente alguém deixou o local exacto para as janelas e pelo menos, já não digo mais do que isso, uma porta de entrada, quintal, não, é impossível, porque não existe terreno suficiente no meu cérebro, e não vivo, porque as personagens umas ontem, outra hoje, e talvez amanhã... morrerá a réstia esperança dos segredos com cabelos castanhos e olhos verdes,
imagino-os
Ai sentados, ai coisa nenhuma, ai... deitados como âncoras de marfim quietas, formadas e bem vestidas, na formatura matinal, e todos os dias, a todas as oito horas da manhã... um pão e uma caneca com leite, depois, acordavam os complementos vitamínicos, como cigarros, vodka e às vezes, eles, tombavam como árvores quando a tempestade aparece e sem qualquer aviso, batem à porta,
quem é?
Correio,
ou é ou é, quase sempre é para receberem, porque para darem alguma coisa, não, nunca utilizam o correio, pelo menos, falo por nós, por mim, por ti
E eu, a infeliz dos dois,
E ele, o desgraçado com óculos e seios postiços, e ele, que em dia normais é ela, ou, ele, não interessa, e ele caminha dentro de nós as duas, cansadas, como animais, eles, abrindo, encerrando, as portas de entrada e as janelas de saída
da algibeira minguada?
De emergência, tinham escrito numa das paredes do sono, havia a planta do exíguo espaço, coisa pouca, “quebrar em caso de emergência” e nós
batemos, batemos... e a dita coisa não quebrou, ficou a olhar-nos, ficou...
E nós, como vós, entre as mulheres delas e os homens nossos, voávamos como pássaros loucos, no exterior complexo com grandes de ferro nas janelas, ele
eu escrevia na traseira das portas de madeira, desenhava na porta da casa de banho, inventava o mar na parede do corredor, e ainda nos sobrou tempo suficiente para assaltarmos a cabine telefónica estacionada no Hall de entrada, éramos também como os pássaros
Loucos embrulhados em drageias,
e os pássaros transformavam-se em cobras, e pela manhã, lá andavam eles a passear no corredor, tinham aproveitado o sonho, e devido ao diâmetro ínfimo, elas, conseguiam, e atravessavam as grades
E comiam-nos, e bebiam-nos, até chegar o medico e obrigar-nos a levantar, e levantávamos-nos, e entre as cobras, fumávamos os primeiros cigarros do dia, os primeiros cigarros da sobriedade, e
desistíamos de viver percebendo que tínhamos deixado a vida suspensa na rua dos plátanos e as personagens coabitam na maternidade dos sonhos, vivem e dormem, ambas, dentro de um exíguo espaço do tamanho de uma algibeira minguada, penumbra e vazia, imagino-os colados ao tecido onde provavelmente alguém deixou o local exacto para as janelas e pelo menos, já não digo mais do que isso, uma porta de entrada, quintal, não, é impossível, porque não existe terreno suficiente no meu cérebro, e não vivo, porque as personagens umas ontem, outra hoje, e talvez amanhã... morrerá a réstia esperança dos segredos com cabelos castanhos e olhos verdes,
Imagino-os...
imagino-me deitado sobre o mar à espera que o barco da loucura me venha resgatar, levar-me para terra, e se possível, ao menos isso, cremarem-me
Como Gogol fez com o manuscrito de “Almas Mortas”... e apenas cinzas, de mim, de ti, e de vós... entre paredes e verniz até à mesa da sala de jantar, penhorada, hipotecada,
imagino-me e imagino-os
Comendo amêndoas recheadas com chocolate.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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