sábado, 1 de junho de 2013

Porque gritam os mabecos se as sandálias são de areia?

foto: Desenho de Francisco Luís Fontinha

Finjo palavras entre orgasmos cúbicos e gemidos triangulares, dizem-me que adormeci na loucura, que sou louco, estranho, até já me disseram que eu era esquisito, não tinha amigos, não conversava com ninguém, dizem que vivo num mundo construído por mim, só meu, apenas meu... e meus Deus que não acredito, tanta, tanta mentira sobre mim, e de mim,
Finjo,
Como todos os ossos fingem solidões de insónia sobre um divã emagrecido pelas sombras dos edifícios contíguos, das varandas, vasos com flores, umas belas, outras, também belas, mulheres, homens e crianças, saltitam sobre um arame fino, de aço, que atravessa o poço da mentira, e
De mim, as palavras que recusam ler, dizer-se fã, como eu o sou de gargantas em transe e coxas almofadadas pelas intempéries que atravessam-me em pequenas sílabas de iodo, o sal desaparece da claridade, como os iões entranham-se em mim, fingindo, mentindo das palavras, aos desenhos, dos vidros às janelas, nuas, despidas, vampiras imagens que sobejam de uma tela tristemente riscada, húmida como o ventre em delírio, o teu, quando percebes que nunca mais descerei da árvore onde vivo, me alimento, e escrevo,
As sempre parvoíces como parágrafos ilimitados, para todas as redes, e perguntaram-lhe
A senhora tem telefone fixo?
Não, menina, não tenho...
Ofereço-lhe um, é seu, para todas as redes, por apenas quinze euros,
Vigaristas trampolins de madeira falsificada, descalços, saboreando as sandálias com tiras de verniz, ontem oferecia-te livros, e livros, hoje, queimo-os, e queimo-os, ontem víamos da janela longínquas luzes que alguém nos dizia serem as lanternas dos salteadores entre marés
A senhora tem telefone fixo?
E vai e vem, descem, sobem, minguam, dilatam como cavernas imprimidas na rocha, sobre ti, nada, ninguém, vozes, algumas, poucas, mentiras, falsidades, mastigadas, por mastigar as ditas proibidas palavras, e repetem até à exaustão
Que sou, ou fui, que serei eternamente,
“finjo palavras entre orgasmos cúbicos e gemidos triangulares, dizem-me que adormeci na loucura, que sou louco, estranho, até já me disseram que eu era esquisito, não tinha amigos, não conversava com ninguém, dizem que vivo num mundo construído por mim, só meu, apenas meu... e meus Deus que não acredito, tanta, tanta mentira sobre mim, e de mim,” Porque apenas converso com eu quero conversar?
Porque me recuso a lamber as botas a quem quer que eu lhas lamba? Como muitos o fazem? Porreiro pá... mastigadas, as pastilhas elásticas, para mim, chuinga, quando acordam as mangueiras depois do cacimbo baloiçarem-se nas suas doces mangas, bajulação, estou eu farto, cansado, e não, e não me digam que eu vivo num mundo à parte, não
(cacimbo, mabecos, mangueiras, cubatas, sanzalas, musseques, chuinga, capim, machimbombo...)
Vivo num mundo real, vivo num mundo onde as pessoas são aquilo que são... e pronto.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Os carris da saudade em direcção à minha caneta de tinta permanente

foto: A&M ART and Photos

Talvez um dia percebas porque dançam as minhas lágrimas
e navegam nos meus débeis braços os barcos de vidro martelado
talvez um dia entendas as personagens de mim
que são de ninguém
como sombras bailando debaixo da chuva
assim
como palavras entre linhas de um caderno negro
e os carris da saudade em direcção à minha caneta de tinta permanente

Talvez um dia o mar seja o nosso reencontro no mergulho do desespero abandono
que todo o pôr-do-sol sofre antes do cair a noite
e acordem milhões de parvas estrelas
que não falam
não escrevem
talvez um dia venhas a perceber quem sou eu
do que padece o meu empobrecido esqueleto
como um texto com duzentos e seis caracteres

Talvez... as minhas lágrimas
e navegam nos meus débeis braços os barcos de vidro martelado
que dos pomares de areia com sabor a amêndoa
do outro lado da janela
um menino embalsamado brinca com um parvo boneco
de nome chapelhudo
e talvez um dia um dia acordem as neblinas imagens de ontem
com as perfumadas sílabas de hoje...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A tua ofegante mistela de cores dentro do teu peito

foto: A&M ART and Photos

Abandonaste-me e enviaste todas as tempestades que assombraram o meu velho cubículo de areia, a cubata tinha uma pequena janela com imagens de paisagens despidas, nuas, e travestidas, da sanzala chegavam até mim os uivos dos pássaros magoados pelas lâminas do final da tarde, havia pequenos charcos nas imaginárias covas do pavimento térreo, terminara a chuva, começava a noite, e o velho homem de vestes emprestadas pelo também velho compadre tinha acabado de roubar todas as estrelas do céu, olhava-o, e entranhava-se-me a escuridão fria e penumbra da noite em pequenas construções, abandonaste-me e tinhas-me pintado de negro,
Olhava-me no espelho do guarda-fato, e de mim sobejava uma imagem em papel com palavras inaudíveis, inacessíveis, palavras inventadas pela teoria do caos, abelhas, moscardos, ventoinhas com motores a diesel, e claro, sempre da janela da cubata, as imagens como feras de cera correndo sobre a procissão à volta do musseque, tinha-lhes medo, pintado de negro, fugi, escondi-me, transformei-me em Cinderela amachucada, primo meu, nuvem tua, rio dele, e porque desejavam as feias pétalas de incenso navegar na maré adocicada dos rebuçados de açúcar que o avô trazia na algibeira e distribuía no final do dia?
Nunca, nunca o entendi, como hoje não entendo a tua ofegante mistela de cores dentro do teu peito..., imagino-te uma tela branca com desenhos inanimados, cadáveres de porcelana em pequenos pedaços milimétricos, e de peso insignificante, desprezível, imagino-te como um balão voando sobre as janelas dos plátanos em frente à rua da escola, imagino-te, não imagino, percebo, deixei de entender as tempestades dentro do meu cubículo de areia, sinto as lágrimas invadirem a minha triste cubata, oiço lá bem longe, da vizinha sanzala os uivos dos mabecos embriagados pelas tuas garras de perfume fingido pela claridade dos cristais das sarzedas imagens das janelas de prata, havíamos imaginado zumbis sobre o zinco, e o último machimbombo com destino à cidade acabara de partir..., nunca, nunca o entendi, como hoje
Acabaram-se as tertúlias e as noites de vadiagem, acabaram-se as viagens ao interior das caves transeuntes por meninas de plumas e asas em cartolina, acabara-se-me a vontade de me sentar num banco de jardim, e esperar, que regresses, viva, morta, semi-nua, nua, em revolta, esperar, sentado, a contar as pedras que uma criança a brincar no parque atira contra uma pequena árvore, vou em duzentas e tu, ainda não presente, desisto, levanto-me, imagino-me caminhando oceano adentro, costa acima, saltito por dentro da ondulação com barbatanas de espuma cinzenta, acabara-se-me os sonhos, mar adentro, vou longe, caminho, caminho, levanto-me do banco de ripas acabadas de pintar
“Cuidado – Pintado de Fresco”
E... como hoje, acabadas de pintar, mergulhadas na água transparente que durante a noite desce sobre a sanzala, entra-me pela pequena janela da cubata, saio de dentro dela, como um recém-nascido, choro, grito, sorrio... invento-te regressando dos montes com pinheiros e bandeiras de pano cetim como quando íamos à Feira da Ladra comprávamos pequenos objectos sem significado, e imagino-me nas mãos da parteira, não me calava, berrava, chorava, fazia com que o zinco da cubata se erguesse e voasse sobre o vizinho musseque, como gaivotas, anos depois, em círculos À volta dos cacilheiros e de uma ponte em ferro, sentava-me, não no banco com ripas de madeira, sentava-me no chão, fumávamos cigarros e imaginávamos o vento bater na face rosada dos jardins de Belém,
E além, depois do grande momento quando as pequenas sanzalas se transformaram em jardins de púrpura, acreditei que nunca mais me “abandonavas e enviavas todas as tempestades que assombravam o meu velho cubículo de areia, a cubata tinha uma pequena janela com imagens de paisagens despidas, nuas, e travestidas, da sanzala chegavam até mim os uivos dos pássaros magoados pelas lâminas do final da tarde, havia pequenos charcos nas imaginárias covas do pavimento térreo, terminava a chuva, começava a noite, e o velho homem de vestes emprestadas pelo também velho compadre tinha acabado de roubar todas as estrelas do céu, olhava-o, e entranhava-se-me a escuridão fria e penumbra da noite em pequenas construções, abandonavas-me e tinhas-me pintado de negro”, acreditei que nunca mais pronunciavas o meu enfeitiçado nome...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha