sábado, 6 de abril de 2013

mil novecentos e oitenta e nove - quarto andar – sala um


Um verso desesperado
na tua mão solitária,
um vidro partido
na árvore dos sofrimentos
quando vem a manhã,
e ele ausente
de ti e de mim,
e ele mente
como toda a gente
quando chove torrencialmente
e caiem as estrelas do nocturno Céu
em desassossego,

O medo sabe escreve nos olhos da noite
como quando tínhamos os abismos segredos
em planícies de solidão,
agredias os meus tristes olhos
com o rancor das tuas lágrimas,
vestias-te de alegria
e dançavas,
comias,
brincavas sobre o meu corpo esmiuçado
entre os cigarros de tinta da china
que o merceeiro nos fiava,
e um pequeno panfleto de açúcar entranhava-se nas tuas veias...

Chegava o carteiro com palavras tuas escritas em papel de arroz
e uma andorinha saltitava no pequenos postal artesanal,
miúdo, pequeno morcego de luz,
e no entanto, vinham os insignificantes plásticos com as sandes
e os carnívoros sons das garrafas de vodka,
era festa lá em casa
bebíamos, comíamos... e dormíamos
e felizmente
sempre tivemos tempo para acordar,
outros
não acordaram nunca
e assim voaram até ao cais dos embalsamados ossos de penicilina...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
06/04/2013 - Alijó

A cidade das ratazanas em porcelana

foto: A&M ART and Photos

Uma cidade em chamas, um povo em alvoroço, as árvores balançam com a fome do povo em alvoroço, e tu, tu aí sentada, a fumar cigarros, como se não estivesse a acontecer nada de especial, está tudo bem dizes-me tu, não há problema, arreganha-me os dentes o teu pai, e no entanto, balançam as árvores, e no entanto, de tanto balançarem... poderão cair, sobre as mãos líquidas do povo em alvoroço, cansado de sofrer, e sem rosto, recomenda-se, e até diria que nunca vivemos como hoje, somos felizes, somos um casal feliz, sorridente, somos perfeitamente... os mais parvos do bairro onde vivemos – És tão pessimista, meu querido! - como fui pessimista quando fugi para cima de uma árvore, quando criança, e só consegui descer com a ajuda dos bombeiros, e tudo, porque, o Alberto meteu-me em cabeça que se eu estendesse um arame no caminho para o bairro, a meia altura do chão, era engraçado quando o senhor António passasse de motorizada, já noite dentro, e com algum desequilíbrio devido à falta de luminosidade ou porque o tinto da tasca da dona Francisca era do melhor que havia, não interessa, o problema foi que quando o pobre do homem vinha no seu rame-rame, pumba, ele para um lado e a pobre da motorizada para outra, conclusão – Quase que era degolado! - decapitado, poderá dizer-se, e ainda nós não vivíamos na Coreia do Norte, ou na China, que a família do pobre condenado à morte por fuzilamento, coitados, têm de pagar a respectiva munição – Queres tu dizer, meu querido, têm de pagar a bala? - sim, é isso, sim...
(os animais humanos sem direitos porque o direito do dinheiro fala mais alto do que a dignidade, tudo se cala, aqui e fora daqui, e assim vão enviando contas de munições a cada família que por azar, um dos seus queridos resolveu desafiar o sistema – E? - sim? - E se eles tiverem fraca pontaria, isto é, se o condenado precisar mais do que uma bala para voar até ao infinito amanhecer? - boa pergunta, minha querida, nunca tinha pensado nisso...)
Sim, talvez, talvez prendam as árvores com fios de aço para que não balancem tanto, mas... - Mas, meu querido, não há aço que aprisione o pensamento, e esse, vai sempre balançar... - mas esta cidade começa a ficar infestada de ratazanas, cabrões e pratos de porcelana...,
(depois dizes-me alguma coisa? - Sim, minha querida, digo)
Amo-te – Desculpa, não sabia, minha querida – e o “panasca”, desde miúdo que nunca gostou de sopa, papas, ou coisas similares, e agora – Obrigaram-te a comer sopa? - e agora digo-o, sem medo que te amo, e pergunto-me, questiono-me, adormeço pensando em ti, e a perguntar-me - E tu rapaz, sabes o que é o Amor? - desculpa, não sei o que são veredas cinzentas com fios de aço, desculpa, minha querida, não sei o que são fios de prata enrolados em pescoços feios, lânguidos, bronzeados cálices de azevinho, mórbidos, esfomeados como o fumo das sanzalas sem candeeiros de oiro, sem rios de magnésio, sem nuvens de chocolate, como a vida de “merda”, a nossa vidinha, de bairro de preferia,
(de uma cidade em chamas, um povo em alvoroço, as árvores balançam com a fome do povo em alvoroço, e tu, tu aí sentada, a fumar cigarros, como se não estivesse a acontecer nada de especial, está tudo bem dizes-me tu, não há problema, arreganha-me os dentes o teu pai, e no entanto, balançam as árvores, e no entanto, de tanto balançarem... poderão cair, sobre as mãos líquidas do povo em alvoroço, cansado de sofrer, e sem rosto, recomenda-se, e até diria que nunca vivemos como hoje, somos felizes, somos um casal feliz, sorridente, somos perfeitamente... os mais parvos do bairro onde vivemos – És tão pessimista, meu querido! - como fui pessimista quando fugi para cima de uma árvore, quando criança, e só consegui descer com a ajuda dos bombeiros...,)
Começo – Não percebi, minha querida! - ah... sim, quando lá passar eu digo-lhe, fica descansada, começo a ficar farto das palavras, dos poemas e dos textos que parecem poemas, começo a ficar farto, dos livros, e das coisas parecidas com livros, começo a ficar farto com o amor e com todas as coisas parecidas – Terminadas em dor? - ou isso, é-me igual, desigual seria se quando regressasse a casa e não encontrasse a porta de entrada, o pior seria se regressasse a casa, encontrasse a porta de entrada, entrasse, e lá dentro, nada – Como nada, meu querido? - nada, nem paredes, nem janelas, nem escadas, nem móveis, absolutamente nada – Imagino-o, meu querido, imagino-o... - e mesmo assim pedia à vizinha do lado – Vizinha, faz o favor de me emprestar a corda de nylon que serve para prender o seu burro à oliveira da terra funda? - ela meia mouca – Quer-se matar, menino? - e como posso eu explicar-lhe, a ela, à dona Francisca, que a corda era apenas para eu lançar ao ramo mais forte da árvore do quintal, e tentar subir até que não existisse mais árvore – Como o fizeste na infância? - e depois vinham os bombeiros, e eu descia
(sim, como o fiz na infância)
E descia, e descia, descia...

(quase ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Porque não sonhas com...

foto: A&M ART and Photos

Acordei cedo, sonhei contigo, e a cabeça estoirava-se-me, alguma coisa que eu tenha deixado sem me aperceber, quero dizer, alguma coisa que eu tenha esquecido sobre a mesa-de-cabeceira, um parafuso, uma porca, um anel ou a pulseira de pechisbeque que comprei no ano passado na barraca do cigano zarolho, mas não sei, meu querido, talvez o copo de água, talvez devido a um dos vidros da janela do quarto estar quebrado, mas... esta dor – Dormes poucos, meu querido – e não, não durmo pouco, nunca dormi pouco, e recuso-me a admitir de durmo pouco, mas durmo, sonho, às vezes, com pedras – Acreditas nisto? Quem sonha com pedras? - mas é verdade, sim, eu sonho, porquê?
(domingo vou à penitenciária visitar o André)
Porque, meu querido, não é normal sonhares com pedras, as pedras não são, não fazem parte dos sonhos – Então com que objectos posso eu sonhar? Se existem objectos para o efeito... - ora, sei lá agora, podes sonhar com o mar quando desce a tarde – Não gosto mais do mar – podes sonhar com as gaivotas em voos triangulares sobre o Tejo – Também deixei de gostar do Tejo e de triângulos – olha, porque não sonhares com
(sinto-o muito magro, diz que não lhe apetece comer, diz que não dorme, que a cela é sombria e húmida, tem os olhos adormecidos, percebes? Parecem o romper da madrugada, mas por alguma razão externa à natureza, a madrugada ficou submersa no horizonte, meia sombria, meia adormecida, meia ensonada, são assim, os olhos do André, sabes? Tenho, tenho pena dele e da solidão que habita nele, tenho pena de ser eu a única visita que tem, a mãe, que não pode, sempre atarefada, a irmã, estuda à noite e trabalha de dia, o irmão mais novo, que não tem coragem para entrar numa penitenciá, tretas, meu querido, tretas, porque a mãe encontro com o amigo, de braço dado a passear no Rossio, à irmã, sim a que diz estudar e trabalhar, essa galdéria, vejo-a sempre com namorados diferentes rua acima, rua abaixo, e)
Experimenta sonhar com nuvens – Nuvens? - vou agora sonhar com nuvens...
(e o cabrão do irmão mais novo sempre com o rabo sentado na sala de jogos, umas vezes a jogar bilhar, outras a ver jogar bilhar, e quando está teso, sabes como é, faz-se à vida, e vai até Belém, engata aqui, engata ali... e o irmão que se lixe – Sabes, meu querido? - tenho pena do André...)
Depois lembrava-me de chuva, e a chuva faz-me recordar as árvores, e as árvores a terra, e a terra o cheiro, e o cheiro..., um quintal esquecido no meio do capim – Talvez consiga sonhar com as bonecas de porcelana da tia Clementina – boa, porque não tentas?
(sinto-o triste, coitado do André)
Às vezes, lembrei-me agora mesmo, tenho medo do sono, é isso, medo de adormecer e não acordar – Medo de morrer... - não, não é medo de morrer, é medo, medo de não acordar, ficar eternamente a dormir, sem pegar em livros, sem ver palavras, sem olhar as flores . Sem ires visitar o André! - sim, também, é esse medo que me preocupa, é esse medo que não me deixa adormecer, assim – Assim enquanto estiveres acordado... - claro, enquanto estiver acordado tenho a certeza que a terra não dorme, e tenho a certeza que a noite não termina nunca, e
(triste)
E consigo ouvir uns pássaros parvos que não dormem nunca, oiço-os toda a noite – Se calhar estás a sonhar que ouves pássaros...! - a sonhar, eu? Eu não sonho, deixei de sonhar, não acredito em sonhos, não
(estás tão pálido, meu querido)
Que não, porque a claridade existe para te proteger das embaciadas línguas de fogo que a maré lança para os barcos, e quando pensávamos que estávamos de mão dada, tu, percebias que eu tinha deixado de existir, estavas só, como sempre, só, e eu, eu nunca percebi a tua solidão, ausentava-me quilómetros de rio até desaguar nas rochas juntamente com o descarregador do esgoto, e
(misturavas-te com a cidade)
E como sempre, a cidade perdidamente perdida nas arruadas sem saída – Tens visitado o André? Como está ele? - uma cidade penumbra com janelas de vaidade, casas que chegam ao Céu, e automóveis que não cessam nunca de caminhar, não dormem, como ele
(triste, muito triste, mas vai-se aguentando)
E como ele, também os outros, aqueles que acordam cedo, e correm para a cidade, fazem-se à vida, às vezes têm azar, e é a vida que se faz a eles, outras vezes, são uns pássaros negros, muito grandes, maiores que os edifícios – Aviões? - sim, esses mesmo, que os levam e nunca mais regressam...
(e que nunca mais vou sair daqui – Claro que vais, André, claro que vais).

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha