segunda-feira, 18 de março de 2013

Gemidos fingidos das janelas de vidro

Imagino-a sentada à minha espera, acendo a luz da despensa, procuro sem precisar qualquer coisa desnecessária, sal, ou açúcar, arroz, talvez polpa de tomate em lata, talvez nada, pretextos, manias, esconderijo onde me sento, esperando que ela
Vou embora,
Volto a apagar a luz, saio da despensa, vou à janela
Batem à porta, imagino-a a voltar, e finjo não estar, como antes o tinha feito,
Da janela, sem a abrir, oiço o desalinho dos automóveis caminhando pela calçada em paralelo que me fazem recordar as noites de embriaguez quando as calçadas voavam conjuntamente com o vento
Ora essa, não acredito!
Verdade, nós cambaleávamos porque os paralelos voavam, saltitavam, e nós, tropeçávamos como tropeçavam as minhocas antes de colocadas no anzol do desgosto, prendíamos grãos de trigo no anzol, e atirávamos-lo para o quinteiro da vizinha, depois, depois era só puxar o fio de pesca e uma galinha acabava de nos sair na rifa,
Acreditas agora?
Vou-me embora, levantar âncoras e baixar velas,
E quando abria a janela subia até nós o intenso cheiro dos resíduos sobrantes da noite passada, aquela onde os paralelos saltitam e cambaleiam, nunca os percebi, nunca os quis perceber, como também não percebo a existência de mim em calções quando me olho no espelho da praia, e eu ando lá, e eu, eu
Não
Andar lá,
Eu morri numa manhã de Sábado, em frente ao Tejo, em Novembro, e enquanto esperava que me transportassem..., perdi-me numa feira de velharias, perdi-me dentro dos livros, dos cachimbos, alguns mais idosos do que eu, e sinceramente, não me recordo de ter passado pela porta da tempestade cinzenta, lembro-me de um velhíssimo chapéu de soldado da ex-URSS, mas da porta
Via os vidros em pedaços, ouvia os estalido dos candeeiros da rua contra os automóveis que circulavam, entre paralelos inquietos, ressacados, de fome nos lábios, senti sobre os ombros as cordas que seguram as roldanas que puxavam as lanças para os guerreiros do Céu, e ouvia-a
Esperava por mim, eu, eu escondia-me dentro da despensa, acendia a luz, fingia procurar coisas, insignificantes, como quando não me apetece falar com ninguém invento buscas à minha biblioteca à procura de livros que ainda não foram editados, de livros que existem apenas dentro da cabeças
Deles e delas,
E eu,
Finjo,
Invento buscas, chamo os bombeiros, dou participação na polícia, digo-o, invento, que desapareceu de casa de seu pai, vestia gabardina negra (de noite) e calças de galga (polidas no tempo), calçava umas sandálias em tiras de couro, e a última vez que o viu
Diz que foi junto aos livros de Luiz Pacheco,
Ou
Não,
Minto,
A última vez que o vi foi junto dos livros de A. Lobo Antunes, foi, tenho a certeza, e desde então, nunca mais
Apareceu,
Nunca mais
Me atormentou,
E nunca mais
Apareceu-me à janela quando a escuridão entra casa dentro como flores tombadas pelas tempestades enceradas com gotas de água e bolas de sabão, lá fora, o cigano com uma máquina esquisita (fogareiro com sujidade) dá à manivela e aos poucos
Mãe
Sim filho
Olha
Pipocas,
E afinal ele ali tão perto, tão perto, perto
Que nunca acreditei que fosse ele, em gemidos fingidos das janelas de vidro.

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha

Claro que não percebes que há olhares invisíveis

É impossível viver-se assim, não concordas comigo?
(meia dúzia de gargantas contra as lajes do vento, três ou quatro mãos arremessando pedras da calçada na direcção da casa amarela da rua escura que tem uma árvore caquética, com dois ou três bancos de jardim, envelhecidos como o povo, como os barcos, como os pássaros que assistem pacientemente à ditadura do dinheiro, morre-se, matam-se, suicidam-se nuvens não percebendo que o futuro é uma sepultura com pedra mármore em cima, cansamos-nos de ouvir tantos e tantos comentadores, que tudo comentam, que nada percebem daquilo que comentam, hoje a receita é uma, amanhã já é outra, e talvez, depois de amanhã, não sei, apreça um que diga que a solução é o peru recheado com batatinhas doiradas, caseiras, o peru, caseirinho, as delícias da avó Silvina, e hoje),
Percebes o que eu quero dizer-te?
(hoje ofereceram-me catorze ovos, caseiros, e sou levado a concluir que o dia não está a ser assim tão horrível, como eu pensava, ao acordar, depois recebo a notícia que vai ser editado pela Fundação José Saramago um novo livro “A estátua e a pedra” de José Saramago, e confesso, neste momento da minha vida, digo-o e repito-o
estou a cagar-me se a barraca vai ou não vai abaixo, que estou a cagar-me se a tenda frágil deste circo vai ou não vai ruir, porque
hoje deram-me catorze ovos, se comer um por cada jantar, tenho catorze jantares garantidos, mais uma laranjas que a velhinha me ofereceu, poderei dizer que
hoje até que nem foi um dia assim tão horrível, chato, não, não,
é impossível viver-se assim, não concordas comigo?)
Nós aguentamos, nós somos como os plátanos, na minha terra adoptiva existe um plátano com cerca de cento e cinquenta e sete anos
E ele
Aguenta, e ele, e ele tem aguentado tudo, tormentas, tempestades, velórios irrisórios, vestimentas de areia, ditaduras, e omissões marítimas, e ele
Aguenta, sempre, hirto, um pouco obeso, é normal para a idade, mas tirando isso
Aguenta, tudo,
(meia dúzia de gargantas contra as lajes do vento, três ou quatro mãos arremessando pedras da calçada na direcção da casa amarela da rua escura que tem uma árvore caquética, com dois ou três bancos de jardim, envelhecidos como o povo, como os barcos, como os pássaros que assistem pacientemente à ditadura do dinheiro, morre-se, matam-se, suicidam-se nuvens não percebendo que o futuro é uma sepultura com pedra mármore em cima, e dizem que o futuro somos nós
nós, quem?
os esqueletos recheados de fome?
ou
os vampiros da morte, os pedintes novos caminheiros caminhando sobre as rodas circulares das ameixas em flor, hoje foram catorze ovos, e amanhã? E se amanhã não existir amanhã? Porque o peru deixou de ser caseiro, ou
Porque as batatinhas deixaram de ser caseirinhas, e das nuvens, nem água, nem incenso, nem
não
nem as planícies dos triângulos azuis que voam sobre as tardes de neblina, tenho vergonha mãe, dizias-me tu quando calçavas as botas com os dentes de fora, de beiços aguçados, ou
tenho vergonha mãe
quando as calças tinha as joelheiras rotas, e tínhamos o couro que servia como remendo e como adereço,
e),
Não sei, diziam-me que aqui havia uma ilha com rochas que falavam, juro, percorri todas as montanhas e rochas nenhumas, quanto mais falarem, e como precisávamos de conversar, olharmos-nos, os meus olhos nos teus olhos, que confesso e não me leves a mal, nunca soube de que cor são, digo-o, para mim passam a ser encarnados com bolinhas brancas, e hoje
Catorze ovos, caseiros, catorze jantares assegurados, laranjas para sobremesa, música, e que nunca nos faltem as pilhas para o rádio, nunca
Porque sem música
Morríamos, deixávamos de dançar sobre as cristalinas ondas de sono, e tu vinhas a perceber que a noite é uma mentira com cortinados de luar,
(não sei o que faça, não sei se amanhã terei força para me erguer, reerguer, gritar, chorar, e acredita, estou calmo, não estou nervoso e não sinto a falta dos cigarros, mas
hoje
e amanhã?
e
depois de amanhã?
Não sei
talvez cresçam e floresçam as inventadas flores que colocamos sobre a pedra mármore das velhas e novas sepulturas, com janelas, com clarabóias, e enxadas de vidro nas mãos calejadas dos homens vestidos de árvores, com três ou quatro pássaros poisados na cabeça, esse homem, esse desgraçado homem,
é ele
sou eu)
Adormeci um dia sem perceber que as manhãs são mesas de madeira com toalhas de plástico; como está tudo isto?
Uma merda, uma grande merda.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha